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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Convocações chegam a 26 e passam a citar fornecedores, que travam disputa de bastidor com montadoras

Recall bate recorde no último ano

LUÍS PEREZ
EDITOR-ASSISTENTE DE VEÍCULOS E CONSTRUÇÃO

O ano passado registrou um recorde no número de recalls de veículos, segundo o Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor). Foram 26, contra 7 em 1999, 24 em 2000 e 14 em 2001, levando-se em conta automóveis de passeio e comerciais leves.
Entre as razões para o aumento está, segundo especialistas, a maior conscientização do consumidor. "O número de defeitos é praticamente o mesmo. Os recalls é que estão aumentando", afirma José Aurelio Ramalho, 40, diretor do Cesvi (Centro de Experimentação e Segurança Viária). "Aqui é uma coisa ruim, tem um ar de terrorismo. Não é ruim, é bom."
"O defeito é lamentável, mas o comunicado é louvável. Hoje se questiona tudo, e a indústria tem mais visão de longo prazo. Eles têm mais medo de esconder do que de mostrar o defeito", diz o consultor Roberto Scaringella, 62.
"No passado, a questão de segurança era tabu na indústria automobilística. A gente vem de uma escola em que a população valorizava mais a alta velocidade do que a segurança", afirma.

Caso dos freios
Há um ano, um problema no sistema de freios provocou recall das quatro principais montadoras do país (Fiat, Volkswagen, General Motors e Ford), afetando 60 mil veículos. Todas esclareciam que o problema estava no equipamento fornecido pela Continental do Brasil Produtos Automotivos.
Desde então, tornou-se comum que, em alguns comunicados, a montadora citasse o fornecedor que fabricou a peça defeituosa. Isso ocorreu duas vezes no final de 2002, com o recall dos tanques dos Chevrolet Meriva e Celta.
Tal citação recebeu elogios do Procon. "Isso não exime a montadora da responsabilidade. Mas, quanto mais transparente for o procedimento, melhor", conclui Lucia Helena Magalhães, assistente de direção do órgão.
"Hoje você vê fornecedores de sistemas completos, não de parafusos. Assim, a responsabilidade acaba tendo de ser compartilhada mesmo", explica Scaringella.
Esses procedimentos, segundo a Folha apurou, são o sintoma mais visível de uma disputa de bastidores comentada à boca pequena por alguns fornecedores, que evitam falar sobre o assunto em uma entrevista formal.
Para eles, as montadoras (ou os próprios fornecedores) pressionam por custos de produção menores e, com prazos cada vez mais reduzidos para o desenvolvimento de projetos, deixam o produto final mais suscetível de defeitos.
As montadoras negam exercer tal pressão, bem como a perda de qualidade. "Pelo contrário, os recursos tecnológicos disponíveis permitem rigorosas análises", afirma José Carlos Pinheiro Neto, vice-presidente da General Motors. Rogelio Golfarb, diretor de assuntos corporativos da Ford, tem discurso semelhante: "Em segurança não há economia".
Lacônica, a Volkswagen diz: "Custa sensivelmente mais, para qualquer fornecedor, produzir um produto sem a qualidade necessária". Citar o fabricante da peça defeituosa, segundo a empresa, "solidariza a responsabilidade".
Já a Ford informou, por meio de sua área de comunicação, que "nunca houve impedimento de publicar o nome do fornecedor" e que isso costuma ficar a critério de cada situação e montadora.

Relação comercial
Os poucos fornecedores que concordaram em falar pediram que sua identidade fosse mantida em sigilo. Deram para isso uma forte razão: qualquer declaração pode melindrar a montadora e afetar a relação comercial.
Segundo um deles, a redução de custos não incide só em determinada peça, mas sobre todo o processo. "Outra coisa é que antigamente um projeto durava dez, 20 anos. Hoje fica no mercado no máximo cinco. Um carro é reestilizado em dois ou três anos."
Para ele, a pressão por custos começa no consumidor. "Instalar um novo motor em um carro onera vários outros participantes do processo. Mas ele não pode repassar o custo, pois o preço do carro não pode aumentar. É a política de preços da montadora."
Estremecer a relação com a fábrica pode simplesmente matar o fornecedor, às vezes uma pequena empresa. Um dos contratos supostamente mais simples, o de fornecimento dos mostradores do painel de um compacto, vigente por quatro anos (vida útil do carro), é estimado em US$ 120 milhões (R$ 440 milhões).


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