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Retratos da China

27/04/2005

Caminhar pelos hutongs de Pequim é como olhar pelo buraco da fechadura

CLÁUDIA TREVISAN
da Folha de S.Paulo, em Pequim

Topar com um casal que anda de pijama ao cair da tarde, um jovem que corta o cabelo na rua ou uma dona-de-casa que cozinha na calçada são cenas corriqueiras nos hutongs de Pequim, que estão entre as construções mais antigas da capital chinesa.

Ruas estreitas, nas quais muitas vezes não passa um carro, os hutongs são ladeados por amontoados de casas, nas quais dezenas de famílias dividem espaços exíguos. Construídos durante as três últimas dinastias do Império Chinês, entre 1271 e 1911, os hutongs moldaram hábitos, cultura e formas de relacionamento dos chineses.

Claudia Trevisan/Folha Imagem
Casal passeia de pijama em um dos hutong de Pequim.
Caminhar pelos hutongs é como olhar pelo buraco da fechadura das casas e poder observar a intimidade e a vida cotidiana das famílias de Pequim.

Local de moradia da elite do país até o século 19, hoje eles são o endereço de famílias mais pobres. Sua principal marca é a vida comunitária, já que a privacidade é um elemento escasso. A maioria das casas não têm banheiro nem cozinha. Os moradores utilizam sanitários e banhos públicos e cada casa tem uma minúscula cozinha ao ar livre.

Apesar do desconforto, são poucos os que gostariam de abandonar os hutongs. O crescimento econômico e a modernização dos últimos 26 anos levou o governo de Pequim a destruir centenas dessas tradicionais formas arquitetônicas, o que obrigou seus antigos moradores a se transferirem a apartamentos, nos quais o isolamento é maior.

A demolição dos hutongs também faz parte do processo de transformação da capital para as Olimpíadas de 2008, quando os chineses pretendem apresentar ao mundo uma face moderna, rica e ocidentalizada.

A resistência de muitas famílias em abandonar as casas onde vivem há décadas é origem de um dos poucos confrontos públicos entre o governo e a população de Pequim. Há casos de desocupação forçada, prisões e violência, cenas que o Partido Comunista tenta evitar a qualquer custo desde que o massacre de estudantes na praça Tiananmen, em 1989, deixou centenas de mortos e manchou a imagem do país no cenário internacional.

Li Yonghua mora no mesmo hutong desde que nasceu, há 43 anos. Hoje, ele divide os 20 metros quadrados da casa com sua mulher e o filho. O imóvel tem apenas sala e quarto, o banheiro é comunitário e a cozinha fica em um pequeno corredor, para o qual dão as portas das casas das 17 famílias que moram no local.

Apesar disso, Li não quer deixar o hutong. "Eu gosto da cultura da Pequim antiga. A proximidade com os vizinhos aqui é grande e em um apartamento nós não poderíamos nos comunicar da mesma maneira", afirma. Além disso, se fosse obrigada a deixar a casa, a família Li receberia cerca de 200 mil yuans de indenização (R$ 61 mil), valor insuficiente para compra de um imóvel nas proximidades do centro de Pequim, onde ficam os hutongs.


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    Claudia Trevisan, colunista da Folha Online, foi correspondente da Folha de S.Paulo em Pequim até abril de 2005. Atualmente é repórter da editoria de Brasil. Também trabalhou em Buenos Aires como correspondente do jornal Valor Econômico.

    E-mail: ctrevisan@folhasp.com.br

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