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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
02/01/2005
Porque São Paulo merece uma festa

A canção "New York, New York" fala de como é maravilhoso acordar numa cidade que nunca dorme.

O que se canta de Nova York se prova, em números, sobre São Paulo. Segundo pesquisa do Datafolha, divulgada na quarta-feira, 58% dos paulistanos têm insônia ou dormem mal; 28% disseram que dormem menos do que o suficiente.

Esse trauma coletivo de falta de sono é, segundo os especialistas, resultado, em boa parte, do ritmo de vida numa cidade estressante, onde quase todos se sentem acuados pela mistura caótica de violência com congestionamento, enchentes, poluição e miséria. Daí que muita gente preferiria, diferentemente do que diz a canção sobre Nova York, acordar em outra cidade.

Por essas e outras, é ainda difícil levar a sério o que vou dizer: São Paulo está metida numa efervescência comunitária de proporções desconhecidas em toda a sua história.

Um dos sinais dessa efervescência acaba de ser desenhado na avenida Paulista.
Há poucas semanas, a prefeitura anunciou que não teríamos o Réveillon. Apesar do pouco tempo disponível, dos custos altos e da enorme logística exigida para fazer um encontro daquelas proporções -em 2002, havia quase 2 milhões de pessoas na avenida-, a cidade não aceitou a idéia de passar o ano em silêncio, como se estivesse de luto.

A mobilização surtiu efeito. Autoridades públicas -inicialmente o governo do Estado e, depois, a prefeitura- sensibilizaram-se; uma empresa entrou com o dinheiro.

O cenário em que ocorreu o Réveillon, a avenida Paulista, é um exemplo de engenhosidade comunitária.

Lá se implantou um sistema de policiamento preventivo que fez o crime desabar na região; policiais recebem gratuitamente aulas de inglês. Recuperou-se uma escola pública (a Rodrigues Alves), que estava caindo aos pedaços. Educadores bancados por empresas tratam agora de transformar o currículo da escola, integrando-o às inúmeras potencialidades da vizinhança: museus (Masp, por exemplo), centros culturais, cinemas, teatros, exposições. O metrô transformou-se em espaço de exposição de trabalhos dos alunos. Ergue-se assim uma escola a céu aberto.

A poucos metros da Rodrigues Alves, um casarão (a Casa das Rosas) virou um espaço dedicado exclusivamente à poesia. Receberam uma estupenda doação: a biblioteca inteira do poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos.

Na outra ponta da avenida, um grupo de adoradores do cinema, entre os quais Fernando Meirelles (do filme "Cidade de Deus"), movido mais pela emoção do que pela razão, recuperou, com a ajuda de um banco (HSBC), um cinema (o Belas Artes) que estava a ponto de fechar as portas.

Aos domingos, a avenida virou uma imensa praça com brincadeiras educativas, fechada para os automóveis.

Toda essa movimentação na avenida Paulista é uma das pontas salientes de um crescente movimento de resistência à barbárie. Seja por marketing, seja por consciência (ou pelas duas coisas juntas), elite que é elite na cidade tem de se mostrar socialmente responsável. Não é moda; é apenas uma nova regra de etiqueta.

Não há uma escola da elite sem um trabalho de inclusão social, que ensine a seus alunos uma atitude mais responsável.

Por todos os lados, disseminam-se associações de bairro ou de rua, entidades não-governamentais, projetos de empresas, indivíduos voluntários querendo preservar e transformar escolas, orfanatos, creches, asilos, centros culturais, parques, praças, bibliotecas, museus, orquestras, monumentos. Propagam-se programas de geração de renda e de estímulo à criação de empresas.

Através do programa Escola da Família, dezenas de milhares de jovens atuam em todos os fins de semana nas escolas em troca da mensalidade das faculdades.

É impossível deixar de reconhecer que um dos pontos fortes da gestão Marta, especialmente trágica neste final de mandato, foi o estímulo ao sentido de coletividade. Foram feitas, como nunca, parcerias.

São Paulo está num momento propício para enfrentar com menos dificuldade sua inviabilidade crônica. Voltam os sinais de crescimento, o que significa redução da miséria. Depois da crise da indústria, investe-se cada vez mais na vocação dos serviços. Desenvolveram-se, nestes últimos anos, fortes políticas públicas, que, embora sejam de gerenciamento duvidoso, focam nos mais pobres. A população está estabilizada e cada vez mais escolarizada.

É uma conjugação de cinco forças: população mais educada, crescimento populacional estabilizado, a iniciativa privada gerando mais empregos e salários, o poder público implantando e gerenciado melhor mais programas de educação e saúde e, enfim, a comunidade se organizando, seja para estabelecer parcerias, seja para cobrar eficiência, seja para denunciar mazelas.

Está nas mãos de José Serra, uma vítima crônica de insônia, não dormir e administrar essas conjugações favoráveis, utilizando o monumental capital humano da comunidade. Pactuar comunidade com poder público, assim como ocorreu simbolicamente na festa da Paulista, é a grande aventura a ser vivida para São Paulo dormir melhor.

PS - Um excepcional exemplo da resistência comunitária paulistana aconteceu neste semana. Numa luta solitária, pais, alunos e professores conseguiram barrar na Justiça o fechamento da escola Martim Francisco para dar lugar a um empreendimento imobiliário. A pedido da prefeitura, a Câmara dos Vereadores autorizou o fechamento da escola, onde também funciona um posto de saúde que atende a 4.000 pessoas por mês. Terminamos o ano com festa na Paulista e salvando uma escola. Bom motivos para comemoração. Merecemos mesmo uma festa.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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