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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
19/12/2004
Lula tem o corpo do Brasil

Raras vezes se viu no Brasil caso tão extraordinário de desinformação coletiva, a começar do presidente da República.

Na quinta-feira passada, pesquisa do IBGE informou que o problema alimentar do país não é o excesso de gente comendo pouco, mas gente que come muito, ameaçada de sofrer as graves conseqüências da obesidade. A verdade é que o Brasil está mais para a silhueta de Lula do que para a dos miseráveis nordestinos pintados por Portinari.

É uma reviravolta de proporções históricas na autopercepção de um país. Cerca de 40% dos brasileiros, segundo a pesquisa, têm peso acima do ideal; 4%, os desnutridos, têm déficit de peso. O problema de saúde pública está, portanto, no excesso -não na falta- de calorias.

Dados ainda vão ser atualizados para medir a desnutrição de crianças e adolescentes. Mas certamente não vão mudar a seguinte lição: informações erradas, fenômeno tão corriqueiro na área social, levam a políticas públicas desastradas, ou seja, ao desperdício de dinheiro.

Daí se tira uma idéia de como se jogam fora recursos destinados à redução da pobreza.

Quando a desinformação se junta ao marketing, soma-se o insulto à ignorância. Para vender o Fome Zero como sua principal bandeira, o presidente Lula chegou a trabalhar com números da ordem de 45 milhões de desnutridos. Tal dimensão justificaria a urgência da implantação do programa. Empresários, solícitos, participaram da arrecadação de fundos; celebridades se mobilizaram em torno da campanha.

Lula conseguiu fazer o combate à fome aparecer, nas pesquisas de opinião, em primeiro lugar entre as ações bem-sucedidas de sua gestão. Ele saiu pelo mundo empunhando essa bandeira, impressionando estadistas e a imprensa internacional.
O governo chegou a suspender a fiscalização da contrapartida da bolsa-escola de que os alunos não faltassem às aulas com o seguinte argumento: o importante é que o dinheiro está ajudando a combater a fome.

Muitos técnicos, porém, não se surpreenderam com as descobertas do IBGE. Quando se lançou a campanha contra a fome, advertiu-se -até mesmo num seminário realizado pela Folha com o Ipea- que os números da desnutrição estavam errados. Mesmo sem renda, famílias conseguiam comida suficiente; seja por entrar numa rede de solidariedade (inclusive as bolsas oficiais), seja porque comiam o que plantavam, caçavam ou pescavam. Tal fato foi mostrado detalhadamente por Ricardo Paes de Barros, economista que usa a matemática para avaliar políticas sociais. "Erraram na dimensão do problema e vão errar na tentativa de resolução", dizia.

O efeito "obesidade" serve de sinal de que políticas sociais podem até ganhar foguetório em seu anúncio, conferindo aos governantes uma imagem de sensibilidade para com os pobres, mas a questão central não é a decisão de acabar com a pobreza, algo com que todos concordam, e sim a maneira de fazer a gerência desses projetos.

Tome-se um exemplo da semana passada. A Prefeitura de São Paulo gastou cerca de R$ 20 milhões para construir cada CEU (Centro Educacional Unificado). Esses "escolões" são como oásis em regiões desoladas. Dados oficiais mostram que os recursos para a sua manutenção e operação não vêm sendo liberados. Há várias semanas, professores protestam por causa de atraso no pagamento dos salários.

O brasileiro ficaria horrorizado se pudesse acompanhar, com um pouco mais de profundidade, casos desse tipo, em que são feitos investimentos em prédios, mas a gerência do programa é falha. Ou projetos que se perdem por falta de foco, baseados em informações erradas. Muitas vezes, as informações estão certas, mas é tamanho o nível de fragmentação das ações, sem conexões com os diversos níveis da administração pública, que se tornam pouco eficientes ou mesmo ineficientes. Outras vezes, programas que funcionam são simplesmente interrompidos por causa de mudanças no governo ou por causa das vaidades.

A novidade positiva é que começa a ser formada nas universidades e no chamado terceiro setor uma geração de técnicos em setor público, especializados em mecanismos de monitoramento e avaliação de políticas públicas. Essas pessoas é que, no futuro, vão dar o tom da cobertura da imprensa nessas questões e dos debates eleitorais.

É um assunto árido, chato até, mas, sem isso, vamos acabar dando mais comida a quem já está gordo -e, ainda por cima, ainda vamos aplaudir.

PS - Por falar em avaliação, vale a pena acompanhar (aliás, para os educadores, é obrigatório acompanhar) uma experiência realizada nos últimos 13 meses em 189 escolas municipais de Santa Catarina e São Paulo. Sob o comando da educadora Rose Neubauer, apoiada pela Fundação Lemann, os gestores daqueles escolas receberam treinamento. O objetivo era melhorar a redação e a leitura dos alunos. Ia-se medindo passo a passo a evolução deles com base em critérios objetivos.

Apesar do pouco tempo da experiência, relatórios, divulgados na quinta-feira, indicam uma melhora, ainda pequena, mas ligeira, no desempenho dos estudantes. Daí se tira que um dos melhores investimentos sociais é o que se faz na formação dos diretores escolares. Mais dados estão no www.fundacaolemann.org.br.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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