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REFLEXÃO


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urbanidade
14/07/2004
Do Brás para o mundo

O embaixador Rubens Ricupero, de 67 anos, enfrenta um prosaico dilema habitacional. A poucos meses de deixar a Secretaria Geral da Unctad, em Genebra, ainda não tem idéia de onde morar em São Paulo. Ele vive um problema imobiliário com uma pitada emocional.

Mudar de casa deveria ser algo corriqueiro, quase automático, para quem nas últimas quatro décadas se transformou num andarilho internacional e viveu em cidades dos mais diferentes costumes. Desta vez, porém, a situação é diferente -a ponto de fazê-lo citar o poeta americano T. S. Eliot: "Meu começo está no fim / meu fim está no começo".

Quando, há 45 anos, Ricupero deixou o Brás, bairro onde nasceu e foi criado, São Paulo tinha pouco mais de 60 mil veículos; hoje conta com quase 6 milhões deles. "Saí do Brás diretamente para o mundo", brinca. Do ponto de vista emocional, ele nunca se separou do bairro, que o encantou, nos seus tempos de menino, com as festas e procissões em italiano. "Como morava grudado a uma cantina, os cheiros de comida faziam parte da paisagem." Mesmo morando longe, manteve-se na associação que, anualmente, promove a festa de São Vito. Ainda hoje está de pé a escola pública (Romão Puiggari) em que, além dos filhos de italianos e de espanhóis, estudavam meninos e meninas ciganos. "Muitos deles caíram na delinqüência e morreram."

Agora, aos 67 anos, Ricupero sabe que São Paulo não é mais passagem, mas a chegada. Aposentou o andarilho, mas o Brás, tão perto geograficamente, ficou tão distante como seus tempos de juventude, quando brincava na rua com meninos que mal falavam o português -e quando os italianos pobres admiravam um ladrão pela sua elegância ao entrar nas casas despercebido.

No recomeço, ele ainda não sabe onde vai morar, mas já tem idéia de como ocupar seu tempo. Vai dar aulas sobre relações internacionais na Universidade de São Paulo e pretende dedicar-se mais ao estudo da poesia. "É a minha paixão."

A paixão pela literatura talvez o coloque, de novo, em contato com a juventude excluída que viu entre os filhos de imigrantes no Brás. Ele descobriu um projeto, chamado Círculo de Leitura, que ensina, em escolas da periferia, autores clássicos. "Não acreditei quando vi aqueles meninos analisando, embevecidos, as obras de Platão e de Shakespeare."

Está decidido a pisar na periferia e a mostrar os encantos da poesia para esses jovens. Gostaria de iniciar justamente por Eliot, um de seus poetas favoritos -o fim, nesse caso, transforma-se mesmo em começo.



Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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