REFLEXÃO


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folha de s.paulo
16/03/2009

O fenômeno Ronaldo

O desempenho do jogador nos últimos jogos provocou interesse e gerou especulações de uma vaga na seleção

Na noite da quarta-feira passada, Ronaldo voltava a brilhar com a camisa do Corinthians, enquanto o João Carlos Martins conseguia tocar piano com os dedos da mão esquerda. O jogador com o pé e o pianista com a mão, em ambientes tão distintos, com o barulho do estádio de futebol e a silenciosa sala de concertos, foram cercados pela admiração da plateia. Especialista em educação, o psiquiatra Içami Tima diz que foram mostrados, naquela noite, dois exemplos de resiliência, a capacidade de superar adversidades -a resiliência, na visão dele, deveria ser um dos principais pontos a serem debatidos por pais e professores se quiserem ver a prosperidade de seus filhos e alunos. "Um dos nossos males é a falta de resiliência dos jovens, a fragilidade para lidar com a frustração."

O desempenho de Ronaldo nos dois últimos jogos do Corinthians provocou um interesse em todo o país, em meio a especulações de que talvez, quem sabe, ele tenha uma vaga na seleção -uma hipótese impensável até poucos dias atrás. Ronaldo sofreu três contusões e, por muito tempo, ficou no limbo, lembrado mais por seu peso ou por escândalos sexuais. Para voltar a mexer os dedos da mão esquerda, João Carlos se submeteu a dolorosas operações. Não faz muito tempo, aquele que era considerado um dos melhores intérpretes perdeu o movimento das mãos e, como Ronaldo, teve seu nome ligado a escândalos -no caso do pianista, a ligação era com verbas escusas das campanhas de Paulo Maluf. Tantas operações e escândalos teriam acabado com muitas carreiras, mas o jogador e o pianista são salvos por um heroísmo pessoal de quem não se deixa abater -apesar de perder as batalhas. Assim, na quarta-feira, João Carlos estava executando a "Heroica", de Beethoven -um compositor que, apesar de perder a audiência, não perdeu a música.

Para Içami Tiba, a resiliência não é um traço genético, mas um comportamento aprendido, a começar na convivência familiar. Parte dessa percepção se deve à sua herança japonesa. "Entre os japoneses, é normal se falar a palavra aguentar." A resiliência dos imigrantes e migrantes diminui, porém, quando as novas gerações já nascem cercadas de conforto e a garra se dilui.

Para o psiquiatra, o problema estaria se agravando, com um excesso de indulgência dos pais e educadores. "O pior que um pai poder fazer pelo filho é tentar fazer tudo por ele. Será um adulto fraco e com pouca habilidade de lidar com a frustração." Volta-se à discussão sobre os perigos da falta de limite.
A psicóloga Rosely Sayão concorda com a ideia de que a resiliência é essencialmente construída. Trabalhando com pais e estudantes, ela tem observado que aqueles que desenvolvem desde cedo a autonomia também são mais resilientes.

"Isso explica as dificuldades de crianças mimadas quando se tornam adultas." Ela está espantada como muitos educadores nem sequer sabem o significado da palavra resiliência, há décadas um objeto de estudo de psicólogos. Há dez anos, na minha coluna da quarta-feira, tenho falando de pessoas que fazem a diferença na cidade de São Paulo -ou seja, gente que, para chegar lá, apanhou de todos os lados. Um traço óbvio delas é a autonomia precoce. Na semana passada, minha personagem foi Gica Mesiara, nascida na periferia e estudante de escola pública que, para atingir seu sonho de ser paisagista, perdeu o cabelo. "É o meu troféu", orgulha-se.

Há, na sociedade, um culto ao prazer -e um prazer em tempo real, traduzido em consumo. O aprendizado tanto dentro como fora da escola implica necessariamente desgaste e aborrecimento em nome de um projeto futuro. É mais um entre tantos obstáculos para se combater o abuso com álcool e drogas.
A reverência excessiva ao mundo das celebridades (a maioria delas nunca fez nada que preste) transmite a mensagem de que alguém vale não pelo que faz, mas por quanto aparece.

O resultado aparece, por exemplo, quando os alunos se frustram na universidade, porque, afinal, são obrigados a focar com mais profundidade no assunto. Ou na rejeição a livros e obras de artes mais complexas, que exigem raciocínio. Ou, pior, quando são obrigados a lidar com a disciplina do trabalho.
Entre educadores, imagina-se até que, com truques tecnológicos, se poderia levar o aluno a aprender como se não aprendesse, apenas se divertiria. É algo parecido a supor que se pode perder peso alegremente, sem dieta e exercício. Olhar-se no espelho e sentir o corpo esbelto dá prazer, mas a caminhada, na balança, é um sacrifício.

Prova disso é que, se Ronaldo não se esforçar no treino (e na balança), ele voltará a ser lembrado mais pelo peso do que pelos gols. E deixará de significar qualquer fenômeno.

PS - O termo resiliência foi importado da física pela psicologia -é o poder dos materiais de voltar ao estado natural depois de um choque. É uma área de estudos especialmente valiosa para sociedades que passaram ou passam pela violência. Para entender melhor, selecionei alguns artigos neste link.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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