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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
17/10/2005
Escola de Talentos

As pessoas achavam graça da habilidade de Francisco Santos em repetir palavras em inglês, francês, alemão, espanhol e até hebraico. Nascido e criado na periferia de Salvador, Francisco costuma prestar atenção nas conversas dos estrangeiros que moram ou passam pela cidade. Sempre que sente abertura, pede ajuda para entender uma frase ou palavra.

Francisco chamou a atenção de uma professora da rede pública, que o encaminhou para um curso de inglês oferecido gratuitamente por uma escola de línguas. Logo se constaria que tinha um talento nato para o aprendizado de línguas. Agora, ele se prepara para cursar uma faculdade de letras ou de turismo; quem sabe, se puder, curse as duas.

A sorte dele é que, na região em que vive (Nordeste de Amaralina), um conglomerado de quatro bairros pobres, marcado pelo tráfico de drogas e pelas guerras de gangues, existe uma experiência chamada de Escola de Talentos. A idéia é simples -aliás, absurdamente simples.

Professores da rede pública estadual foram treinados a identificar talentos dos alunos e a providenciar para que sejam tutorados por alguém na cidade. Daí se revelaram ourives, saxofonistas, enfermeiros, artistas plásticos e modelos. A descoberta dos talentos perdidos ajuda a aprofundar o debate sobre o desarmamento.

Os eleitores brasileiros estão sendo submetidos, nesse debate sobre o desarmamento, às ilusões do "sim" e do "não". Sou favorável à proibição de venda de armas, mas estou convencido de que não é um fator essencial para reduzir a violência -quem sabe, em alguma medida, talvez ajude. O turma do "não" vende a ilusão de que as pessoas, se armadas, estarão mais protegidas.

O fato de Francisco se desviar para bem longe do caminho da delinqüência, comum em seu bairro - nas horas vagas ele dá aula de xadrez na comunidade -, está associado à sua capacidade de sentir-se com chances de progresso. Não é, evidentemente, um caso isolado. Indivíduos com auto-estima elevada e perspectivas de vida, estejam ou não armados, tendem a pensar muitas vezes antes de cometer uma asneira que os arruine. E, aí, vai de matar alguém a transar sem camisinha, passando pelo abuso das drogas.

No caso de Francisco há um ingrediente, ainda pouco conhecido no Brasil, de enfrentamento da barbárie: a transformação das escolas em centros comunitários. Em muitos países, ricos e pobres, está bem documentada a ação preventiva à violência, quando as escolas se convertem em espaços articuladores de redes de saúde, cultura, educação, lazer e qualificação profissional.

De meros repetidores de matérias, muitas vezes desconectadas do cotidiano, as escolas se convertem em produtores de capital social, ou seja, de uma rede de parcerias positivas entre indivíduos e instituições. Já dá, no Brasil, para medir esse resultado. O índice de criminalidade tem caído substancialmente dentro e no entorno das escolas abertas nos finais de semana.

Cai ainda mais, como mostram as pesquisas, quando se acoplam às atividades culturais e esportivas projetos de estímulo ao protagonismo juvenil; são estímulos que levam os jovens a se sentirem autores em suas vidas e em suas comunidades.

Por isso, vale a pena prestar a atenção em uma experiência, ainda iniciante, capaz de servir como arma contra a violência. São os programas de formação de professor comunitário desenvolvidos em universidades como a USP e a Unicamp e aplicados em São Paulo; essa função do magistério começa a ser testada, no próximo ano, em seis regiões metropolitanas brasileiras, envolvendo universidades federais.

O papel desse professor é assessorar a direção da escola para que se estabeleçam laços com a família e a comunidade. Cabe a ele, por exemplo, ao perceber que um aluno está usando drogas, envolver sua família e encaminhá-lo para ser tratado pela rede pública ou por um médico voluntário. Assim como lhe cabe descobrir atividades culturais, esportivas e de qualificação profissional ou atrair programas extracurriculares para dentro da sala de aula.


Seu papel, em resumo, é criar redes de proteção e inclusão em torno da escola, favorecendo o desenvolvimento de talentos. O Dia do Professor, comemorado neste final de semana, é propício para lembrar que a educação é a principal arma contra a violência. E que não é responsabilidade só da escola e do governo. É uma teia que junta escola, família e comunidade -e, aí, um garoto que tem facilidade para línguas, como Francisco, vira um poliglota e consegue se manter longe da marginalidade.

No lugar de armas, carrega uma tabuleiro de xadrez para ajudar crianças de seu bairro a duelar usando só o raciocínio.

P.S. - No dia em que as elites brasileiras forem mais educadas, o Dia do Professor será uma das principais celebrações nacionais. Isso porque se saberá que o pior desperdício brasileiro é o desperdício de talentos.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

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