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As pessoas achavam graça da habilidade
de Francisco Santos em repetir palavras em inglês, francês,
alemão, espanhol e até hebraico. Nascido e criado na periferia
de Salvador, Francisco costuma prestar atenção nas conversas
dos estrangeiros que moram ou passam pela cidade. Sempre que
sente abertura, pede ajuda para entender uma frase ou palavra.
Francisco chamou a atenção de uma professora da rede pública,
que o encaminhou para um curso de inglês oferecido gratuitamente
por uma escola de línguas. Logo se constaria que tinha um
talento nato para o aprendizado de línguas. Agora, ele se
prepara para cursar uma faculdade de letras ou de turismo;
quem sabe, se puder, curse as duas.
A sorte dele é que, na região em que vive (Nordeste de Amaralina),
um conglomerado de quatro bairros pobres, marcado pelo tráfico
de drogas e pelas guerras de gangues, existe uma experiência
chamada de Escola de Talentos. A idéia é simples -aliás, absurdamente
simples.
Professores da rede pública estadual foram treinados a identificar
talentos dos alunos e a providenciar para que sejam tutorados
por alguém na cidade. Daí se revelaram ourives, saxofonistas,
enfermeiros, artistas plásticos e modelos. A descoberta dos
talentos perdidos ajuda a aprofundar o debate sobre o desarmamento.
Os eleitores brasileiros estão sendo submetidos, nesse debate
sobre o desarmamento, às ilusões do "sim" e do "não". Sou
favorável à proibição de venda de armas, mas estou convencido
de que não é um fator essencial para reduzir a violência -quem
sabe, em alguma medida, talvez ajude. O turma do "não" vende
a ilusão de que as pessoas, se armadas, estarão mais protegidas.
O fato de Francisco se desviar para bem longe do caminho da
delinqüência, comum em seu bairro - nas horas vagas ele dá
aula de xadrez na comunidade -, está associado à sua capacidade
de sentir-se com chances de progresso. Não é, evidentemente,
um caso isolado. Indivíduos com auto-estima elevada e perspectivas
de vida, estejam ou não armados, tendem a pensar muitas vezes
antes de cometer uma asneira que os arruine. E, aí, vai de
matar alguém a transar sem camisinha, passando pelo abuso
das drogas.
No caso de Francisco há um ingrediente, ainda pouco conhecido
no Brasil, de enfrentamento da barbárie: a transformação das
escolas em centros comunitários. Em muitos países, ricos e
pobres, está bem documentada a ação preventiva à violência,
quando as escolas se convertem em espaços articuladores de
redes de saúde, cultura, educação, lazer e qualificação profissional.
De meros repetidores de matérias, muitas vezes desconectadas
do cotidiano, as escolas se convertem em produtores de capital
social, ou seja, de uma rede de parcerias positivas entre
indivíduos e instituições. Já dá, no Brasil, para medir esse
resultado. O índice de criminalidade tem caído substancialmente
dentro e no entorno das escolas abertas nos finais de semana.
Cai ainda mais, como mostram as pesquisas, quando se acoplam
às atividades culturais e esportivas projetos de estímulo
ao protagonismo juvenil; são estímulos que levam os jovens
a se sentirem autores em suas vidas e em suas comunidades.
Por isso, vale a pena prestar a atenção em uma experiência,
ainda iniciante, capaz de servir como arma contra a violência.
São os programas de formação de professor comunitário desenvolvidos
em universidades como a USP e a Unicamp e aplicados em São
Paulo; essa função do magistério começa a ser testada, no
próximo ano, em seis regiões metropolitanas brasileiras, envolvendo
universidades federais.
O papel desse professor é assessorar a direção da escola para
que se estabeleçam laços com a família e a comunidade. Cabe
a ele, por exemplo, ao perceber que um aluno está usando drogas,
envolver sua família e encaminhá-lo para ser tratado pela
rede pública ou por um médico voluntário. Assim como lhe cabe
descobrir atividades culturais, esportivas e de qualificação
profissional ou atrair programas extracurriculares para dentro
da sala de aula.
Seu papel, em resumo, é criar redes de proteção e inclusão
em torno da escola, favorecendo o desenvolvimento de talentos.
O Dia do Professor, comemorado neste final de semana, é propício
para lembrar que a educação é a principal arma contra a violência.
E que não é responsabilidade só da escola e do governo. É
uma teia que junta escola, família e comunidade -e, aí, um
garoto que tem facilidade para línguas, como Francisco, vira
um poliglota e consegue se manter longe da marginalidade.
No lugar de armas, carrega uma tabuleiro de xadrez para ajudar
crianças de seu bairro a duelar usando só o raciocínio.
P.S. - No dia em que as elites brasileiras forem mais educadas,
o Dia do Professor será uma das principais celebrações nacionais.
Isso porque se saberá que o pior desperdício brasileiro é
o desperdício de talentos.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
USP
treina professor comunitário
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