REFLEXÃO


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folha de s. paulo
22/12/2008

O pior da crise não é o desemprego

Melhorar a educação é tão complexo e tão urgente que pode ser comparado à abolição da escravidão

No começo do ano, eu estava presente numa conversa em que Roger Agnelli lamentava a dificuldade que a Vale, da qual é diretor-presidente, vinha tendo para contratar profissionais e que corria o risco de suspender investimentos. Uma das soluções seria abrir negócios em outros países, onde haveria maior oferta de trabalhadores qualificados. Sugeria que o governo estimulasse urgentemente cursos técnicos e comentava que talvez tivesse de importar profissionais.

Naqueles primeiros dias do ano, o maior símbolo do crescimento econômico era o salário de mestres-de-obras mais experientes, que, em certos casos, superava o de engenheiros -falava-se em salários acima de R$ 10 mil. Empresas caçavam aposentados, e os alunos recém-formados em engenharia viam-se cercados de diversas propostas.

Agora, Agnelli lamenta ter virado, na semana passada, centro de um tiroteio, ao propor "medidas de exceção" para flexibilizar a legislação trabalhista e evitar demissões. Nessa brutal oscilação de lamentos -da preocupação com a falta de trabalhadores a anúncios de demissões- está um dos piores efeitos.
Saiu de foco algo que, pela primeira vez em nossa história, tinha entrando em foco: o consenso de que o desenvolvimento da nação dependia da formação técnica dos trabalhadores, o que exigiria uma profunda mudança no ensino público.
O consenso que se montou perde o extraordinário impulso que recebeu especialmente neste ano.

Na semana passada, ocorreu, no Ministério da Educação, um encontro de especialistas para discutir o ensino médio, uma das maiores bombas sociais brasileiras. Era quase unânime que o que se ensina está desconectado do mercado de trabalho e serve essencialmente como um ritual de passagem para a faculdade. O que se pretende é mesclar ao máximo a escola regular com cursos profissionalizantes.

Esse tipo de discussão é permeado por números, mostrando que um aluno formado num curso profissionalizante está praticamente empregado. Em alguns casos, há mais empregos do que candidatos.

Lula alardeou a expansão do ensino técnico como uma das suas principais bandeiras sociais do fim de sua gestão. Isso porque, entre outras coisas, ele quer ir além do Bolsa Família e mostrar as tais portas de saída. Um dos pontos interessantes em sua gestão social, neste ano, foi ter induzido o chamado Sistema S (Senac e Senai) a abrir mais vagas gratuitas para alunos da rede pública. Um dos prováveis adversários do PT na próxima sucessão presidencial, José Serra, também faz do curso técnico sua mais importante bandeira educacional. Gilberto Kassab se elegeu prometendo colocar cursos técnicos nos CEUs, proposta que Marta Suplicy garantia ter sido tirada de seu programa.


O governo do Ceará apresenta como uma de suas propostas sociais mais ousadas a transformação de suas escolas em centros profissionalizantes, ou seja, em portas de entrada para o mercado de trabalho. Em Minas, Aécio Neves implanta sistemas de mérito que visam também chegar dentro de sala de aula.

Com os recordes de contratação, o clima esteve mais propício às campanhas para que as empresas admitissem mais jovens pela lei da aprendizagem. Nunca tantos empresários, atentos à baixa qualificação de seus empregados, falaram com tal ênfase em educação pública e até assumiram a dianteira para a construção de uma nova agenda educacional.

Esse envolvimento tem estimulado que, em SP, dezenas de empresários assumam escolas públicas no movimento chamado "Parceiros da Educação" -está aí, aliás, uma das bases de apoio para que o governo estadual tivesse mais respaldo para aprovar, na semana passada, bônus de mérito para professores. Deve-se a empresários o fato de que, em PE, prosperem escolas estaduais geridas em parceria com a comunidade e regidas por metas além do reconhecimento por mérito.

A tarefa de melhoria da educação é tão complexa e tão urgente para a nossa civilidade que pode ser comparada à abolição da escravidão. A crise econômica altera as prioridades -muitos empresários, compreensivelmente, vão ter de olhar, por um bom tempo, mais para dentro de seus negócios. É uma alteração que toma conta de toda a sociedade, a começar do governo, obrigado a cortar gastos e prestar atenção na questão emergencial do emprego. Na semana passada, o Ministério da Educação figurava na lista das vítimas de cortes.

Nada disso significa, obviamente, que seja esquecida a questão educacional. Mas apenas que, com a crise, uma série de ações vai ter muito menos velocidade e, a julgar pelo tamanho do problema, já não era muito veloz. Por isso, o pior da crise não é o desemprego, por mais doloroso que seja, mas a perda de espaço da educação na agenda brasileira.

Coluna originalmente publicada na Folha Online, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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