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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
24/07/2005
Luzes da cidade

Está em gestação um projeto cultural jamais visto no Brasil: transformar uma cidade num imenso palco. Durante 24 horas seguidas, danças, peças de teatro, exposições, leituras de poesia, palestras, concertos e shows serão apresentados nos mais diversos locais, simultaneamente, na cidade de São Paulo.

A idéia seria oferecer, de madrugada, apresentações de uma orquestra sinfônica ou de uma ópera em imponentes salas de concerto, enquanto escolas de samba desfilassem no sambódromo ou um grupo de rock se apresentasse numa casa de espetáculos. Depois dos concertos, seria possível ir a uma livraria para uma sessão de autógrafos ou, quando o sol estivesse nascendo, a uma peça de teatro ou a um balé contemporâneo num parque.

Batizado de Cultura 24 Horas, o projeto, cuja realização está prevista para este ano ainda, talvez ofereça menos eventos do que o planejado ou nem sequer saia do papel, mas, mesmo assim, revela uma visão de vanguarda: mostrar que, em meio à crônica deterioração urbana, à violência e ao desemprego, uma comunidade é palco de efervescência social, política e cultural.

A rigor, o PT deveria ter a cara desse tipo de experimentação - afinal, juntam-se na cidade de São Paulo artistas e intelectuais para inventar ou reinventar alguma coisa. Um dos sinais da pesquisa Datafolha, publicada hoje, é que o PT vai se afastando cada vez mais dos holofotes desse "palco".


Viáveis ou não, projetos assim revelam a resistência, da qual o PT foi uma das luzes, de uma comunidade atacada por todos os lados. Agora, entretanto, como aponta o Datafolha, o partido se distancia do espírito da cidade em que foi concebido e nutrido para ganhar o país. A crise ética que envolve Lula atinge todo o Brasil, mas é especialmente significativa em São Paulo. Essa decepção é o que explica, pelo menos em parte, a maior aprovação de José Serra, detectada pelo Datafolha. Lula e Serra estão em empate técnico num eventual segundo turno da disputa presidencial. A vantagem do prefeito alarga-se essencialmente entre os eleitores de ensino superior.

Pode-se não gostar do PT, mas é impossível não reconhecê-lo como uma das riquezas paulistanas. É resultado de uma associação, em larga medida, de dirigentes sindicais, encabeçados por Lula, egressos de partidos de esquerda, com intelectuais da Universidade de São Paulo.

O PT surgiu em São Paulo não somente urbano mas metropolitano, atrelado a segmentos expressivos das elites pensantes e a empresários modernos com vocação social.

Comemora-se em São Paulo a redução da taxa de homicídios numa velocidade nunca vista no país -é essa, neste momento, a experiência social mais importante da cidade. Esse sucesso tem toda uma lista de sócios, mas é impossível deixar de relacioná-lo a programas lançados pelas prefeitas eleitas pelo PT (Luiza Erundina e Marta Suplicy) na periferia. Coube ao partido promover ações de renda mínima, por exemplo. Uma boa parte dos líderes comunitários que desenvolvem planos de combate à violência esteve ou está próxima, em maior ou menor grau, do PT.

Quem não vê São Paulo apenas pelos chavões e acompanha esse movimento de resistência sabe que vem ocorrendo aqui uma veloz transformação, que vai produzindo palcos simbólicos. Uma prisão (Carandiru) agora é um espaço para lazer e educação da juventude; uma estação de trem abandonada (Júlio Prestes) se transforma numa sala de concerto; outra estação decadente (Luz) prepara-se para abrigar um memorial da língua portuguesa; o sambódromo, cujas instalações estavam vazias fora do período do Carnaval, passou a ser também uma escola complementar ao ensino regular. A "cracolândia", símbolo da deterioração, é preparada para receber um pólo de tecnologia de comunicação.

Não é obra de um governo, mas obra da vanguarda de uma comunidade, integrada pelo PT e por seus representantes e simpatizantes. É o reflexo de uma cidade que, além das articulações de trabalhadores, de empresários, de associações de rua e de bairro, se educa. Dos 7.278.988 habitantes de São Paulo com mais de 20 anos, 1.482.422 têm diploma de ensino superior.

É nesses segmentos de maior escolaridade, como mostra o Datafolha, que a imagem de Lula vem sofrendo maior impacto -subiu dez pontos o índice de eleitores que consideram o seu governo ruim ou péssimo. A imagem do partido sempre foi associada à elite acadêmica.

As pesquisas indicam que, em média, Lula vai mantendo seu prestígio, o que dá a falsa impressão de que, apesar de tudo, a situação pode se manter sob controle. Indicam, porém, que o PT está mais próximo do Brasil provinciano, atrasado, deseducado. Esse resultado sustenta-se, em parte, na desinformação de quem não acompanha o que está acontecendo e, se acompanha, não entende.

Por isso essa estrela brilha menos no palco de uma cidade disposta a se apresentar, pelo menos num dia, como um lugar que possa consumir cultura durante 24 horas seguidas.

PS - Por ver São Paulo como um grande laboratório da vanguarda social brasileira, considero que José Serra terá de oferecer um excepcional argumento -coisa que não vejo nem remotamente- para abandonar seu compromisso de que não faria de sua eleição para prefeito um trampolim. Podem me chamar de provinciano, mas sou dos que consideram o bairro uma cidade e a cidade um país. O desenvolvimento brasileiro não se constrói em Brasília, mas nas cidades, cada vez mais fortes, com os prefeitos no papel de principais articuladores das políticas federais e estaduais em associação com os líderes locais. A saída de Serra seria encarada como mais uma decepção provocada por um político que empenhou a palavra (aliás, até a colocou por escrito) e voltou atrás. A propósito, é dele a idéia do evento Cultura 24 Horas.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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