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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
30/11/2003

Bom aluno não leva vestibular a sério

Alice Baeta Castanheira, 20 anos, estudante de administração, descobriu que os vestibulares para os cursos concorridos, desses que enlouquecem os alunos mais aplicados, são uma moleza comparados à seleção para vagas de estágio ou de trainee nas melhores empresas.

Neste ano, ela enviou cem vezes seu currículo pela internet para as mais diferentes empresas e submeteu-se a dez seleções, com provas e entrevistas. Uma dessas seleções para um banco demorou seis meses. Alice saiu-se bem nas provas e nas entrevistas. Já estava comemorando. Faltava-lhe apenas a formalidade de um exame médico. "Foi um baque", diz.

Um médico disse que sua voz talvez não conseguisse dar conta do serviço, já que trabalharia, inicialmente, num setor de telemarketing. "Acharam que eu ficaria rouca facilmente." Apesar de abatida pela sensação de morrer na praia, não desistiu.

Candidatou-se a um estágio numa empresa naval, que oferecia salário de R$ 500 mensais. Dessa vez, não encontraram nenhum problema em sua voz. "Sinto que sou uma pessoa de sorte." De fato, não existe nenhum vestibular no país que chegue perto dessa relação de 200 candidatos por vaga.

No banco em que a desclassificaram pelo exame médico, cerca de mil candidatos concorriam a um único estágio -dez vezes mais concorrido, portanto, do que o vestibular mais concorrido.

Neste fim de semana, primeira fase da Fuvest, 157 mil jovens estarão atormentados por causa de 8.927 vagas, quase todas para a cobiçada Universidade de São Paulo. Outros milhares já estão, pelo Brasil, metidos em vestibulares que lhes tiraram horas de sono e lhes custaram anos de decoreba -boa parte inútil.

O motivo do esforço é óbvio: a conquista de um bom emprego. Não é óbvio, porém, o que Alice aprendeu para se conseguir o bom emprego: entrar nas melhores faculdades não conduz ao país das maravilhas. A prova mais difícil está para vir -a qual a imensa maioria desconhece e para a qual não foi preparada.

Tão ou mais importante do que passar pela peneira de uma faculdade é entrar em empresas capazes de projetar o jovem no mercado de trabalho, enriquecendo-lhe o currículo. Nas boas empresas, a relação de mil candidatos por vaga é a regra.

O programa de treinamento desta Folha, por exemplo, não oferece salário nem assegura emprego, exigindo quatro meses de envolvimento diário: as dez vagas por turma são disputadas por 2.000 pretendentes.

O que os alunos não sabem (até porque as escolas não ensinam) é que, para esses testes, não adianta decorar mais do que o conhecimento, avalia-se atitude.

A maioria das pessoas tomba logo nos exames de conhecimento geral (é necessário ser leitor habitual de jornais e revistas), de língua portuguesa ou inglesa. Aí, porém, é bico. Depois, serão medidos empreendedorismo, criatividade, capacidade de trabalhar em grupo, equilíbrio emocional, facilidade de comunicação, habilidade de reciclagem das informações. Por isso, se valorizam itens que, até há pouco tempo, seriam tidos com exóticos. Trabalhos comunitários, por exemplo. Alguns medem até intuição.

Imagina-se que o marco divisório da elite brasileira é a entrada nas melhores faculdades. Não é mais assim.

O diploma, evidentemente, importa. Mas a principal divisão, a que mostra quem vai pegar os melhores empregos, são as provas das grandes empresas (aquelas que mais ensinam), que exigem dos candidatos capacidade de aliar atitude e conhecimento.

Daí que a lição, por mais estranha que pareça, é a seguinte: se o estudante quiser prosperar fora dos muros escolares, ele deverá esforçar-se, até porque não há alternativa para entrar nas boas faculdades, mas estará ameaçado se levar o vestibular muito a sério -essa lição que as escolas deveriam ensinar aos estudantes.

Neste momento, os chefes de recursos humanos têm tanto ou mais a ensinar sobre pedagogia do que os educadores.

A julgar pela seleção das empresas, o perfil do bom aluno não é o daquele que tira as melhores notas nas escolas.Talvez seja até mesmo o do indisciplinado. As pessoas que não se submetem muito às regras e questionam são as mais propensas a experimentar, a inovar, a aventurar -empreender significa a vontade de arriscar, de fugir às convenções.

PS - Como o tema hoje é empregabilidade, segue uma dica. Tenho observado e participado de experiências feitas em escolas envolvendo adolescentes com atividades comunitárias. O envolvimento continuado, integrado ao currículo, com projetos comunitários é dos melhores exercícios para desenvolver simultaneamente senso de responsabilidade, aprendizado multidisciplinar e empreendedorismo. Trabalha-se com excesso de problemas e carências de verbas, demandando criatividade e gosto pela aventura. Não é à toa que recrutadores de empresas começam a ver na ficha dos candidatos se eles desenvolvem ações comunitárias.


Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S.Paulo, aos domingos.

   
 
 
 

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