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17/02/2006
As drogas como meio de "pertencimento" e função social

Sandra Scivoletto

Fatores de risco para o início do uso de drogas:
Analisando-se os fatores internos do adolescente que podem facilitar o uso de álcool e drogas, merecem destaque a insatisfação e não realização em suas atividades, a insegurança, os sintomas depressivos, ou seja, a sensação de não pertencer a nada ou a ninguém. Os jovens, como qualquer pessoa de outra faixa etária, precisam sentir que são bons em alguma atividade, sendo que este destaque representará a identidade e a sua função dentro do grupo – a sensação de pertencimento. O adolescente que não consegue se destacar nos esportes, estudos, relacionamentos sociais, dentre outros, pode buscar nas drogas a sua identificação. Em outras palavras, a sensação inicial do “não pertencimento” é resolvida: o jovem passa a pertencer ao mundo das drogas e adquire uma função neste mundo.

Os sintomas depressivos na adolescência e as crises de angústia que, em muitos casos, fazem parte da adolescência normal, são também fatores de risco. O jovem que está triste, desanimado ou mesmo ansioso e angustiado irá buscar atividades ou coisas que o ajudem a melhorar. As drogas aparecem novamente como o “remédio” para este mal. Em outras palavras, estes adolescentes vão usar as drogas como uma tentativa de se auto-medicar. Quanto mais impulsivos e menos tolerantes às frustrações, maior será este risco. Segundo estudo desenvolvido com adolescentes dependentes, aqueles que apresentavam sintomas depressivos evoluíram mais rápido da experimentação para o uso regular e também consumiam drogas mais fortes, como a cocaína, em alguns casos sem o uso anterior de substâncias mais “leves”, como a maconha. No tratamento, a depressão é um diagnóstico diferencial que deve ser pesquisado e tratado, com influência direta no prognóstico destes jovens.

Consequências do uso de drogas:
O uso de drogas afeta, diretamente, a cognição, capacidade de julgamento, humor e as relações interpessoais, ou seja, compromete a inserção da pessoa em sua comunidade e sua relação com esta.

A adolescência é a passagem da infância para a vida adulta e um período crítico na formação da identidade e desenvolvimento da personalidade. Um dos principais pontos na formação da identidade é a “individuação”: reconhecer-se como um indivíduo único, com um papel e uma função a desempenhar dentro de uma estrutura maior – família ou comunidade. Esta, quando completada com sucesso, é caracterizada pelo auto-controle e auto-estima. Caso este processo seja interrompido ou distorcido por algum motivo (doença, violência, privação excessiva, uso de drogas, por exemplo), a personalidade resultante pode ser excessivamente dependente de fatores externos, ao invés dos internos, na determinação de comportamentos e identidade.

O uso de drogas e álcool na adolescência afeta o desenvolvimento de funções sociais e o estabelecimento de relações interpessoais – ou seja, a capacidade de “pertencimento” citada acima. Os adolescentes dependentes de drogas e/ou álcool afastam-se dos outros jovens da mesma faixa etária, assim como das normas existentes nas atividades rotineiras. Estas atividades, que são preparatórias para a vida adulta, incluem namorar, formar laços fortes de amizade e a participação em grupos e atividades que requerem o desenvolvimento de algumas habilidades sociais, como cooperação e interdependência. Neste contexto, o consumo de alguma droga pode alterar a capacidade de auto-avaliação e o julgamento de seu desempenho e da resposta do meio. Por exemplo, um jovem inseguro começa a ter suas atividades sociais e faz uso de cerveja para conversar com o grupo de amigos ou até para convidar uma garota para sair. Se ele teve sucesso com esta “receita”, a tendência será repetir exatamente o mesmo processo na próxima oportunidade. Em muitos casos, sente-se extremamente inseguro e prefere não sair a correr o risco de ter um mau desempenho, caso não possa fazer uso da substância por algum motivo.

Cria-se, então, um outro tipo de dependência, diferente da dependência química vista em adultos: o adolescente passa a depender da substância (pode até ser cerveja, e independe da quantidade consumida) para desenvolver suas atividades sociais. Este jovem, com frequência, passa a estabelecer novos relacionamentos e baseá-los no consumo de drogas e/ou álcool. Alguns adolescentes utilizam o álcool e as drogas inicialmente para recreação e acabam por não desenvolver outras formas de divertimento ou de descontração. Uma parte deles terá dificuldades em manter relacionamentos afetivos sem o uso destas substâncias, dificultando ainda mais o estabelecimento de laços mais fortes de relacionamento. Quanto mais cedo se dá o primeiro uso de qualquer substância, maior será o risco deste processo se desenvolver.

Nesta fase da vida, o jovem começa também a se voltar para sua escolha profissional e suas vocações. A ansiedade e desconforto por não saber do que gosta são desejáveis e necessárias, pois são elas que impulsionarão o jovem a experimentar novas atividades, buscando aquela em que mais se realiza. Entretanto, se o jovem utiliza o álcool ou a maconha para “acalmar ou diminuir” esta angústia, o processo de escolha vocacional pode ser retardado ou até interrompido. Daí a dificuldade que muitos adolescentes usuários esporádicos de maconha encontram para fazer sua escolha vocacional.

Infelizmente, as alterações causadas no processo de maturação dos jovens usuários de drogas tendem a permanecer como “lacunas” na sua vida adulta. Os adolescentes que tiveram suas capacidades cognitivas - como, por exemplo, aquisição de conhecimentos e capacidade de julgamento e crítica - e de relacionamento prejudicadas pelo consumo de álcool e/ou drogas possuem menos estratégias para lidar com fatores estressantes que aparecem na vida diária. Com isso, o bom desempenho dos papéis na vida adulta fica comprometido, uma vez que os eventos estressantes estão relacionados com as responsabilidades de trabalho e das relações sociais e interpessoais, dentre outras.

Os adolescentes não estão imunes às consequências físicas causadas pelo uso de drogas. Entretanto, na maioria dos casos, os organismos destes jovens são mais resistentes a estas agressões do que os organismos de muitos adultos. Desta forma, o que acaba levando o jovem e a sua família a buscar tratamento são as consequências sócio-comportamentais, muito mais do que as consequências físicas. No atendimento de adolescentes dependentes de drogas, quando iniciavam o tratamento - por volta dos 15 anos - 85% já tinham abandonado os estudos, 64% tinham praticado roubos e furtos e 47% apresentavam envolvimento com tráfico de drogas, sendo que apresentavam, em média, apenas 2,5 anos de tempo de uso de drogas. Com tão pouco tempo de uso, era esperado que as alterações físicas não fossem tão evidentes ou marcantes quanto são para os adultos. É importante destacar que o envolvimento com furtos havia se iniciado ao redor dos 13 anos, quando estavam começando o uso regular de maconha e antes da experimentação da cocaína. Aos 14,5 anos, quando começavam o uso regular de cocaína e experimentavam “crack”, ocorria o abandono da escola e o início do tráfico de drogas. Quanto maior a quantidade de drogas consumidas, ou quanto mais frequente era este uso, maior era a alteração de comportamento. Podemos dizer que as alterações de comportamento são proporcionais à intensidade do uso de drogas e já se iniciam mesmo nos primeiros estágios da progressão de consumo, precedendo em muitos casos a evolução para o consumo de drogas mais pesadas.

Particularidades no tratamento de adolescentes:
O adolescente é um indivíduo em desenvolvimento, o que implica no reconhecimento de características únicas desta faixa etária que serão de grande importância por ocasião da seleção ou desenvolvimento de modalidades de tratamento para esta população. É indiscutível a necessidade de programas de tratamento especialmente desenvolvidos para faixas etárias mais jovens, uma vez que as necessidades desta população são diferentes das dos adultos. Eles parecem estar mais preocupados com fatos presentes como vida familiar, na escola ou com os amigos do que com possíveis comprometimentos físicos ou psíquicos que as drogas possam vir acarretar.
A primeira dificuldade no tratamento de adolescentes é motivá-los e mostrar esta necessidade. Para muitos jovens, é difícil aceitar a idéia de que a droga faz mal, pois é através dela que se relacionam, ou seja, a droga passa a ser o meio de pertencer a alguma coisa. Além disso, a droga passa a preencher suas vidas, além de aliviar angústias e desconfortos (até mesmo alivia a fome, diminui o cansaço). Para eles, a droga é a solução para suas dificuldades, não o problema. Como já ouvi de um garoto: “para usar drogas estamos sempre rodeados de pessoas; para parar de usar, estamos sozinhos”.

Uma das principais tarefas no tratamento de adolescentes dependentes de drogas é a de ajudá-los a encontrar outro meio de interação com o mundo, uma outra ferramenta que os permita estabelecer relações e encontrarem seu papel na comunidade. Um novo papel, de construção, não apenas forma de fugir do vazio.

Para isso, a abstinência não basta: é preciso ajuda-lo a retomar seu desenvolvimento normal. A obtenção da abstinência pode ser vista como uma porta ou ponte para a recuperação. Esta, por sua vez, requer que o adolescente faça uma reformulação em sua identidade, de alguém que precisa de alguma droga para se divertir, aliviar o desânimo, superar medos e problemas, enfim, como meio de existir, para uma pessoa que consiga se divertir com a vida, superar suas dificuldades e realmente ser alguém sem precisar de drogas. A dificuldade é que esta identidade é completamente nova. Ela não pode ser relembrada, mas deve ser construída. Não se trata de reabilitação, mas sim de habilitação.

No passado, o abuso de drogas e álcool era visto como o principal problema e causador de qualquer outra disfunção que o adolescente apresentasse. Atingindo a abstinência, todos os outros problemas estariam resolvidos, ainda que pouca atenção direta e específica tivesse sido dada a estas questões. Entretanto, os objetivos no tratamento de adolescentes usuários de drogas e/ou álcool devem ser muito mais amplos, incluindo a mudança global no estilo de vida e a oportunidade de pertencer a um mundo real, não o mundo da droga. A mudança no estilo de vida inicia-se com a abstinência completa de qualquer droga, passando pelo desenvolvimento de atitudes, valores e comportamentos sociabilizantes, assim como o desenvolvimento de aptidões direcionadas a uma melhora das relações interpessoais e para a construção de um papel ou função na comunidade. É o desenvolvimento deste papel que confere identidade às pessoas, que é realmente estruturante.

A capacidade de expressão é uma das principais ferramentas que permitirá que o jovem se insira no mundo e, a partir deste espaço que começará a ocupar, se reconheça como indivíduo único e possa estabelecer relações. Esta cadeia de relacionamentos e funções é que o manterá num ciclo virtuoso, não mais vicioso, de construção e edificação. No momento em que ele se sente enxergado e pertencente a um mundo, que se sente respeitado em seu espaço e função, passará a respeitar o outro. Neste momento, a droga deixa de ser o meio pelo qual ele se faz existir e passa a ser a ferramenta de destruição. Agora o jovem é capaz de perceber que precisa, pode e deve construir! Não há mais lugar para a droga. Não há razão para a violência.

Textos complementares:

The speech evaluation as motivational instrument in the treatment of chemical dependency in adolescents: a Brazilian experience

O que adolescentes dependentes químicos acham sua comunicação?

A infância de adolescentes farmacodependentes

   
 
 
 

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