São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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PERFIL
Jornalista paquistanês descreve suas longas entrevistas com o líder terrorista saudita

Meus dois encontros com Bin Laden


"Apalparam meus testículos, passaram gel no meu corpo, quebraram minhas canetas e checaram meu bloco"

"Percebi que, se eu revelasse a menor informação sobre o local onde ele se encontrava, se eu o traísse, seria morto"



PHILIPPE GRANGEREAU
DO "LIBÉRATION", EM ISLAMABAD

Uma casinha burguesa, com jardim minúsculo, num subúrbio de Islamabad. Sentado em sua sala, Hamid Mir, 36, redator-chefe do jornal "Ausaf", especializado em divulgar informações sobre os movimentos islâmicos, recorda o que passou por sua cabeça quando recebeu de Osama bin Laden o terrível "beijo da serpente".
Foi em maio de 1998, numa das bases clandestinas do inimigo público número 1 dos Estados Unidos. Foi a segunda vez que ele viajou ao Afeganistão para entrevistar o líder supremo da Al Qaeda.
Nessa época, o esconderijo de Bin Laden ficava perto do aeroporto de Candahar, em túneis escavados debaixo de um vilarejo destruído, de modo a ser indetectável por avião ou satélite.
Bin Laden tinha a seu redor apenas cerca de 30 combatentes, aparentemente todos árabes, com a exceção de dois muçulmanos negros americanos. "Eram os mesmos que eu tinha visto em nossa primeira entrevista, em 1997", conta Hamid Mir.
"Foi nessa ocasião que ele me propôs, muito educadamente, que eu escrevesse sua biografia. Eu aceitei, é claro, apavorado. Ele já sabia tudo sobre mim. Como eu poderia recusar?"
Bin Laden lera o livro de Hamid Mir sobre o ex-primeiro-ministro paquistanês Zulfikhar Ali Bhutto. Bhutto é, de certa maneira, seu herói. Ele foi assassinado "pela CIA [agência de inteligência dos EUA]", teria dito Bin Laden, porque quis construir "a primeira bomba atômica islâmica".
Mir aceitou a proposta, mas explicou a Bin Laden que era jornalista, logo, que não escreveria o que lhe fosse ditado. "Ele concordou e, por sua vez, me disse quais eram suas condições: o manuscrito teria de ser submetido a ele antes da publicação, e eu só ficaria com os direitos autorais das edições em inglês e urdu [língua falada na Índia e no Paquistão". Todos os outros, das edições em francês, árabe, espanhol etc., teriam de ser repassados a ele."
"Bin Laden é um homem de negócios que presta extrema atenção aos números", afirma Mir, que concluiu o livro e, há vários meses, aguarda o sinal verde do "xeque Osama" para publicá-lo.

Mesquita Vermelha
Sua entrevista com Bin Laden, que deveria durar algumas horas, estendeu-se por dois dias e duas noites. Ao longo dos anos seguintes, Mir foi enviando a Bin Laden, de Islamabad, onde reside, e por meio de emissários de Bin Laden, perguntas às quais este foi respondendo, muitas vezes com semanas de atraso.
"Ele entra em contato comigo sempre por meio de mensageiros, e suas respostas são escritas em árabe e em urdu, pela mão de Ayman Al Zawahiri, o chefe do Jihad Islâmico" e braço direito de Bin Laden. Um desses emissários, o imã da mesquita Vermelha de Islamabad, foi misteriosamente assassinado em outubro de 1998.
Hamid Mir tem, portanto, o privilégio pouco invejável de ser o jornalista que já chegou mais perto do homem mais procurado do mundo. Ele já chegou a ser acusado de exagerar suas histórias.
Na época redator do "Daily Pakistan", Mir teve um encontro com o mulá Mohamad Omar, chefe supremo do Taleban, em 1996, em Candahar. Os Estados Unidos acabavam de pedir ao Taleban a extradição de Bin Laden.
"O mulá confirmou que rejeitaria o pedido. Quando lhe perguntei se poderia arranjar uma entrevista com Osama, ele respondeu que este dispunha de rede própria." Em fevereiro de 1997, um emissário argelino procurou Mir em Islamabad para lhe oferecer um encontro com Bin Laden.

Revista humilhante
"Ele me submeteu a uma bateria de perguntas, visando determinar minhas convicções religiosas e políticas. "Podemos organizar uma entrevista", ele me disse ao final, "mas, enquanto estivermos estudando o assunto, o senhor vai ficar sob observação"."
O argelino voltou na segunda semana de março. "Esteja pronto amanhã, com seu fotógrafo." No dia 13 de março de 97, Mir, o fotógrafo e o emissário foram a Peshawar. O argelino alugou um ônibus para levá-los até Torkham, na fronteira do Afeganistão.
"No posto de fronteira do Taleban, para grande surpresa minha, não quiseram que eu apresentasse meu passaporte", relata Mir. "Foram categóricos: "O senhor não precisa desse documento. Faça o que lhe estamos dizendo ou então volte para a sua casa"".
Do outro lado da fronteira, eles caminharam por várias horas, percorrendo trilhas de contrabandistas. "Chegamos até uma estrada onde nos aguardava um jipe. Depois de andar por pelo menos duas horas no jipe, colocaram uma venda nos meus olhos, e aí andamos mais uma hora e meia. Chegamos a uma área montanhosa nas cercanias de Jalalabad, num local habitado por centenas de homens armados."
O passo seguinte foi uma revista "muito humilhante". "Eles me fizeram tirar toda a roupa e me apalparam os testículos, depois passaram gel no meu corpo e me submeteram a uma prolongada ecografia do ventre. Fiquei estarrecido com todos os equipamentos. Quebraram minhas canetas e me disseram que me dariam outras, de luxo. Também examinaram meu bloco de anotações."

Ameaças e sorrisos
Meia hora mais tarde, Osama os recebeu "calorosamente". No local em que se encontravam, havia televisores, videocassetes, livros. Eles se sentaram sobre tapetes e começaram a jantar.
"Uma enorme travessa foi trazida contendo um carneiro inteiro assado, arroz, salada e Pepsi-Cola gelada. Fiquei apavorado ao descobrir tudo que ele sabia a meu respeito. Ele me disse: "Eu sei muitas coisas. Você entrevistou Shimon Peres na Suíça em 1994, correto? E Nelson Mandela em 1995, não é mesmo?"."
Embora seja formado em informática, Bin Laden não fala inglês. Era o comandante do Jihad Islâmico egípcio, um pediatra diplomado, que fazia a tradução.
"Depois ele me falou, sorrindo: "Você tem um filho. O nome de seu pai é X. Você tem quatro irmãos e uma irmã. Conheço seus amigos" (citou três nomes). Ele leu o número de minha conta bancária e até mesmo o telefone de minha amante. Percebi que, se eu revelasse a menor informação que fosse sobre o local onde ele se encontrava -se eu o traísse-, seria morto."
Ameaças, mas acompanhadas de sorrisos. "Depois do jantar farto, ele nos deixou, dizendo "até amanhã de manhã". Meu fotógrafo começou a entrar em pânico, achando que seríamos mortos durante a noite.
"Tive que tranquilizá-lo. Fomos acordados bem cedo na manhã seguinte, e nos mandaram tomar banho, o que fizemos num grande reservatório de água situado no pátio. Fizemos as orações com os guardas, depois tomamos o café da manhã com Bin Laden. Por fim, a entrevista começou.
"Ela levou muitíssimo tempo porque o tradutor improvisado, o comandante do Jihad egípcio, falava um inglês ruim. Pedi, então, que buscassem um tradutor profissional de árabe para urdu, e a entrevista pôde continuar sob boas condições."

Aritmética
Enquanto conversavam, Hamid Mir observou um garotinho. Era Mohamad bin Laden, um dos filhos de Osama. Durante o dia, Osama fez um discurso a seus homens. Disse a eles que as empresas americanas roubam o petróleo dos árabes. Nos últimos anos, os preços não pararam de subir, mas não os do petróleo, devido à pressão americana.
Em seguida, ele se lançou numa aritmética complicada, misturada com dados econômicos, entre eles o preço do barril do petróleo e o número de anos passados desde que a espoliação começou. Ele concluiu que os norte-americanos deviam aos árabes US$ 30 bilhões e que era preciso retomar esse dinheiro.
"Depois disso, fomos dispensados", conta Hamid Mir. "Um dos homens de Bin Laden nos acompanhou até a cidade de Peshawar para que lhe devolvêssemos os negativos das fotos que tínhamos tirado. Ele temia que elas pudessem ser usadas para montagens."
Na segunda entrevista, Hamid pôde mais uma vez constatar até que ponto Bin Laden gosta de citar números, que lhe servem como argumento máximo.
"Perguntei a ele por que ordenou a morte de todos os americanos, já que alguns deles são muçulmanos, e, além disso, o Islã proíbe a morte de crianças inocentes. Ele me respondeu que essa fatwa tinha sido decretada pelo xeque Omar Abdul Rahman, que lhe pedira que a assinasse."
E Bin Laden continuou: "Enquanto os israelenses matam crianças inocentes no Líbano e na Palestina, por que esses inocentes muçulmanos, judeus e cristãos americanos guardam silêncio? Seu silêncio os torna cúmplices, logo, devemos matá-los".

Guerra entre civilizações
Quando Hamid Mir lhe disse que discordava, pois aquele que ele matasse talvez fosse um americano que tivesse erguido a voz contra a política dos Estados Unidos no Oriente Médio, Bin Laden embarcou num longo monólogo.
"Acabei por me perder completamente: ele falou do estupro de 110 mulheres pelos israelenses desde 1947, da morte de 50 mil crianças e de 70 mil outras pessoas entre 1947 e 1996."
Após essa contabilidade estranha, Bin Laden começou a citar trechos do Alcorão. "Quando ele se baseia nas suratas [capítulos do Alcorão", torna-se impossível argumentar com ele, embora, na realidade, ele só conheça os princípios gerais do islamismo."
Apesar disso, Hamid Mir acha que a popularidade de Bin Laden entre os jovens muçulmanos pelo mundo está aumentando sem parar. Se os Estados Unidos atacarem o Afeganistão militarmente sem oferecer provas irrefutáveis de seu envolvimento nos atentados recentes, isso vai apenas fortalecer Bin Laden politicamente.
"A ideologia de Bin Laden, baseada no ódio aos Estados Unidos, é perigosa", diz o jornalista.
"Na minha opinião, é perigosa até mesmo para o islamismo. Mas vai se espalhar pelo mundo islâmico como um incêndio numa pradaria. Os jovens, que têm preguiça de estudar o verdadeiro islamismo nas madrassas [escolas islâmicas], vão acreditar no seu herói. Estou convencido de que, nesse caso, vamos assistir a uma guerra entre civilizações."


Tradução de Clara Allain


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