São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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Abismo separa a Espanha de seus antigos ocupantes


Essa batalha seguirá sendo a penúltima; estamos em uma trajetória de penúltimas; um dos graves defeitos do ocidental quando pensa sobre esse mundo é que imagina os fatos isolados, e eles nunca são


CASSIANO ELEK MACHADO
EM MADRI

Uma faixa de 18 km separa a Espanha do Marrocos. Nos mapas está escrito que ela é ocupada pelo mar, mas as repercussões internas do dia 11 de setembro mostram mais uma vez que ela mais parece um abismo.
Os árabes-islâmicos já dominaram o lado de cá do Estreito de Gibraltar por oito séculos e atualmente vivem, em território espanhol, 500 mil muçulmanos, mas diante de uma ameaça de "demonização" mundial dos árabes a Espanha calou.
E permaneceu calada mesmo quando, no dia seguinte ao atentado nos Estados Unidos, a maior mesquita de Madri amanheceu pichada com tinta vermelha, e a notícia foi para os cantos das páginas dos jornais.
Considerado um dos maiores estudiosos do universo árabe na Espanha, Pedro Martínez Móntavez, 68, interpreta a reação majoritária espanhola como "mais americanista do que os americanos" e diz que o Ocidente mostra outra vez que é "incapaz de pensar historicamente o islã".
Autor de estudos como "Pensando a História dos Árabes" e "A Longa Crise do Mundo Árabe Contemporâneo", catedrático e ex-reitor da Universidade Autônoma de Madri, prestes a completar sua "boda de ouro" nos estudos árabes, Móntavez recebeu a Folha para tentar explicar, partindo de um dos primeiros pontos de encontro dessas duas civilizações, porque existem tantos abismos entre o mundo ocidental e Meca.

Folha - Durante o domínio árabe-islâmico na Espanha, a convivência entre os povos das três religiões monoteístas foi uma das mais pacíficas da história. Em que momento surgiu a suposta rivalidade atual?
Pedro Martínez Móntavez -
É um processo muito longo, de muitos séculos, e muito variado. A presença árabe-islâmica na Península Ibérica começa no século 8 e termina, oficialmente, no final do século 15, apesar de se manter socialmente até o começo do século 17. Penso que al-Andalus, termo com o qual é conhecida a dominação muçulmana da Península Ibérica, foi uma época exemplar de convivência, ou de coexistência. Esses modelos começaram a se deteriorar durante o século 11.
Não se pode esquecer que o cristianismo, o islamismo e o judaísmo são religiões monoteístas, e o monoteísmo tende ao expansionismo. Assim, acredito que para que haja diálogo deve se falar muito menos sobre doutrinas religiosas e muito mais sobre fórmulas de civilizações.

Folha - O que a análise do momento de convivência das civilizações desenvolvido na Espanha pode acrescentar ao entendimento do panorama atual?
Móntavez -
Sendo, como é, al-Andalus um referente histórico de indiscutível importância para buscar e reimplantar fórmulas de convivência e coexistência, também não convém mitificá-lo.
Até mesmo nesse período houve espaço para a falta de capacidade de convivência. A história do Ocidente e do islã sempre alternou períodos de hostilidades e de relações mais ou menos pacíficas.

Folha - O sr. disse em entrevista há três anos que a Guerra do Golfo era a penúltima grande batalha entre o Ocidente e o mundo árabe-islâmico. "A última está por vir", dizia. Chegamos a ela? A alternação de hostilidade e paz chegou ao fim?
Móntavez -
Não. Essa batalha seguirá sendo a penúltima. Estamos em uma trajetória de penúltimas. Um dos graves defeitos do ocidental quando pensa sobre esse mundo é que imagina os fatos isolados, e eles nunca são.
Pensar historicamente o islã não é um costume no Ocidente. E isso é um enorme defeito, que nos incapacita para entender os fatos que acontecem agora, que fazem parte de um processo.

Folha - Que processo é esse?
Móntavez -
É o afincamento em boa parte das sociedades islâmicas de um sentimento de repulsa em direção a práticas que genericamente atribuem ao mundo ocidental, em especial aos Estados Unidos. Fatos como os atentados do dia 11 de setembro são injustificáveis, mas respondem historicamente a uma situação de hostilidade.

Folha - Atualmente, a Espanha segue como um dos principais palcos de encontro do islã com o Ocidente. Qual foi e qual ainda será o impacto dos quatro Boeings por aqui?
Móntavez -
Na Espanha, a postura oficial e majoritária é a de solidarizar com o povo e com a administração americana. Estamos diante de um momento adequado para que muita gente seja mais americanista que os americanos, um momento de grande hegemonia ideológica deles.

Folha - Além da reação oficial, quais os impactos para a comunidade hispano-islâmica?
Móntavez -
Não sou porta-voz deles, mas pelo contato que tenho com esse universo vejo que há uma sensação de medo que ainda não se manifestou com toda a sua dramaticidade. Há, ainda, uma cautela, um "vamos ver se vão nos demonizar mais do que estão fazendo".

Folha - E quão demonizados estão sendo os árabes e islâmicos na Espanha?
Móntavez -
Não tanto como nos Estados Unidos. Depois dos atentados do dia 11, a primeira vítima de ataques lá por sua condição de árabe foi um copta, ou seja, um cristão egípcio. Foi atacado e morto porque se pensava que ao ser árabe era muçulmano.
Na Espanha, se conhece mais o árabe do que o islâmico. O árabe forma parte de nossa civilização.

Folha - E quais são os rastros que a presença árabe deixou na Espanha nos quase oito séculos de presença na Península Ibérica?
Móntavez -
Esta cidade aí fora foi fundada por um emir de origem síria, um islâmico, do século 9. Esta rua aí fora se chama Alcalá. É uma palavra árabe que significa fortaleza. O árabe está muito entranhado na cultura espanhola, ainda que não se perceba com clareza. E não apenas em monumentos como a Alhambra, em Granada. Os exemplos são infinitos e podem começar por este cardápio em minha mão. Arroz, azeite, açúcar... São vestígios, que estão em todas as partes.
Também no comportamento. Dois espanhóis podem ficar muito tempo diante de uma porta dizendo: passe o senhor primeiro, por favor. O outro: não, o senhor, por favor. O senhor. Não, o senhor. Essa capacidade de alternância, de insinuar, mais que afirmar, tem muita relação com o mundo árabe-islâmico.


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