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Abismo separa a Espanha de seus antigos ocupantes
Essa batalha seguirá sendo a penúltima; estamos em uma trajetória de penúltimas; um dos graves defeitos do ocidental quando pensa sobre esse mundo
é que imagina os fatos isolados, e eles nunca são
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CASSIANO ELEK MACHADO
EM MADRI
Uma faixa de 18 km separa a Espanha do
Marrocos. Nos mapas
está escrito que ela é
ocupada pelo mar, mas as repercussões internas do dia 11 de setembro mostram mais uma vez
que ela mais parece um abismo.
Os árabes-islâmicos já dominaram o lado de cá do Estreito de Gibraltar por oito séculos e atualmente vivem, em território espanhol, 500 mil muçulmanos, mas
diante de uma ameaça de "demonização" mundial dos árabes a Espanha calou.
E permaneceu calada mesmo
quando, no dia seguinte ao atentado nos Estados Unidos, a maior
mesquita de Madri amanheceu
pichada com tinta vermelha, e a
notícia foi para os cantos das páginas dos jornais.
Considerado um dos maiores
estudiosos do universo árabe na
Espanha, Pedro Martínez Móntavez, 68, interpreta a reação majoritária espanhola como "mais
americanista do que os americanos" e diz que o Ocidente mostra
outra vez que é "incapaz de pensar historicamente o islã".
Autor de estudos como "Pensando a História dos Árabes" e "A
Longa Crise do Mundo Árabe
Contemporâneo", catedrático e
ex-reitor da Universidade Autônoma de Madri, prestes a completar sua "boda de ouro" nos estudos árabes, Móntavez recebeu a
Folha para tentar explicar, partindo de um dos primeiros pontos
de encontro dessas duas civilizações, porque existem tantos abismos entre o mundo ocidental e
Meca.
Folha - Durante o domínio árabe-islâmico na Espanha, a convivência
entre os povos das três religiões
monoteístas foi uma das mais pacíficas da história. Em que momento
surgiu a suposta rivalidade atual?
Pedro Martínez Móntavez - É um
processo muito longo, de muitos
séculos, e muito variado. A presença árabe-islâmica na Península Ibérica começa no século 8 e
termina, oficialmente, no final do
século 15, apesar de se manter socialmente até o começo do século
17. Penso que al-Andalus, termo
com o qual é conhecida a dominação muçulmana da Península
Ibérica, foi uma época exemplar
de convivência, ou de coexistência. Esses modelos começaram a
se deteriorar durante o século 11.
Não se pode esquecer que o cristianismo, o islamismo e o judaísmo são religiões monoteístas, e o
monoteísmo tende ao expansionismo. Assim, acredito que para
que haja diálogo deve se falar
muito menos sobre doutrinas religiosas e muito mais sobre fórmulas de civilizações.
Folha - O que a análise do momento de convivência das civilizações desenvolvido na Espanha pode acrescentar ao entendimento
do panorama atual?
Móntavez - Sendo, como é, al-Andalus um referente histórico
de indiscutível importância para
buscar e reimplantar fórmulas de
convivência e coexistência, também não convém mitificá-lo.
Até mesmo nesse período houve espaço para a falta de capacidade de convivência. A história do
Ocidente e do islã sempre alternou períodos de hostilidades e de
relações mais ou menos pacíficas.
Folha - O sr. disse em entrevista
há três anos que a Guerra do Golfo
era a penúltima grande batalha entre o Ocidente e o mundo árabe-islâmico. "A última está por vir", dizia. Chegamos a ela? A alternação
de hostilidade e paz chegou ao
fim?
Móntavez -Não. Essa batalha seguirá sendo a penúltima. Estamos
em uma trajetória de penúltimas.
Um dos graves defeitos do ocidental quando pensa sobre esse
mundo é que imagina os fatos isolados, e eles nunca são.
Pensar historicamente o islã
não é um costume no Ocidente. E
isso é um enorme defeito, que nos
incapacita para entender os fatos
que acontecem agora, que fazem
parte de um processo.
Folha - Que processo é esse?
Móntavez - É o afincamento em
boa parte das sociedades islâmicas de um sentimento de repulsa
em direção a práticas que genericamente atribuem ao mundo ocidental, em especial aos Estados
Unidos. Fatos como os atentados
do dia 11 de setembro são injustificáveis, mas respondem historicamente a uma situação de hostilidade.
Folha - Atualmente, a Espanha
segue como um dos principais palcos de encontro do islã com o Ocidente. Qual foi e qual ainda será o
impacto dos quatro Boeings por
aqui?
Móntavez - Na Espanha, a postura oficial e majoritária é a de solidarizar com o povo e com a administração americana. Estamos
diante de um momento adequado para que muita gente seja mais
americanista que os americanos,
um momento de grande hegemonia ideológica deles.
Folha - Além da reação oficial,
quais os impactos para a comunidade hispano-islâmica?
Móntavez - Não sou porta-voz
deles, mas pelo contato que tenho
com esse universo vejo que há
uma sensação de medo que ainda
não se manifestou com toda a sua
dramaticidade. Há, ainda, uma
cautela, um "vamos ver se vão nos
demonizar mais do que estão fazendo".
Folha - E quão demonizados estão sendo os árabes e islâmicos na
Espanha?
Móntavez - Não tanto como nos
Estados Unidos. Depois dos atentados do dia 11, a primeira vítima
de ataques lá por sua condição de
árabe foi um copta, ou seja, um
cristão egípcio. Foi atacado e
morto porque se pensava que ao
ser árabe era muçulmano.
Na Espanha, se conhece mais o
árabe do que o islâmico. O árabe
forma parte de nossa civilização.
Folha - E quais são os rastros que
a presença árabe deixou na Espanha nos quase oito séculos de presença na Península Ibérica?
Móntavez - Esta cidade aí fora foi
fundada por um emir de origem
síria, um islâmico, do século 9. Esta rua aí fora se chama Alcalá. É
uma palavra árabe que significa
fortaleza. O árabe está muito entranhado na cultura espanhola,
ainda que não se perceba com clareza. E não apenas em monumentos como a Alhambra, em Granada. Os exemplos são infinitos e
podem começar por este cardápio
em minha mão. Arroz, azeite,
açúcar... São vestígios, que estão
em todas as partes.
Também no comportamento.
Dois espanhóis podem ficar muito tempo diante de uma porta dizendo: passe o senhor primeiro,
por favor. O outro: não, o senhor,
por favor. O senhor. Não, o senhor. Essa capacidade de alternância, de insinuar, mais que afirmar, tem muita relação com o
mundo árabe-islâmico.
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