São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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O humanismo acuado pela injustiça


Em clima de emoção ainda exacerbada, é difícil distinguir uma religião dos desvios que ignorantes podem praticar


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Tahar Benjelloun, 57, escritor marroquino radicado na França, narra a cena em que sua filha de sete anos o procurou há dias para saber "se é verdade que os muçulmanos são gente do mal".
A opinião, por mais simplista e caricatural que seja, é um novo subproduto dos atentados cometidos em Washington e Nova York, e cujos autores Benjelloun qualifica de "ignorantes" dos fundamentos islâmicos.
Benjelloun é autor de 25 livros, dois deles publicados em 2000 no Brasil: "Os Frutos da Dor" (Record) e "O Racismo Explicado a Minha Filha" (Via Lettera).
Leia abaixo os principais trechos de sua entrevista.

Folha - O sr. acredita ser possível conter o sentimento antiislâmico despertado pelos atentados em solo norte-americano?
Tahar Benjelloun -
Não será fácil, sobretudo porque são de carne e osso aqueles que utilizaram o Islã para cometer esses crimes. Nesse clima de emoção ainda exacerbada, é difícil para as pessoas distinguir uma religião e sua cultura dos desvios catastróficos que ignorantes podem praticar. É preciso, de qualquer modo, insistir no fato de que o islamismo é uma religião de fundamentos humanistas, e que no Alcorão não há um único versículo que justifique o assassinato ou o suicídio. São atos claramente proibidos e punidos pela religião muçulmana.

Folha - Mas a questão não é teológica. Ela se tornou política.
Benjelloun -
Com certeza. Daí derivam as dificuldades de esclarecê-la às pessoas.

Folha - Os países árabes teriam credibilidade para fazer algo?
Benjelloun -
Os mundos árabe e muçulmano não foram hábeis na propagação de uma imagem mais apropriada do islamismo. Da mesma forma com que não demonstraram competência na neutralização de grupos de extremistas que, dentro de suas fronteiras, exercem suas atividades.

Folha - Mas esses grupos não atuam a partir do nada. Eles evocam sempre algum pretexto.
Benjelloun -
Isso é exato, e cito dois exemplos. As pessoas tendem a ignorar que há anos a aviação norte-americana bombardeia alvos civis iraquianos. A população, já vítima da ditadura de Saddam Hussein, torna-se também vítima da ação de uma superpotência. Digamos que não se pode esperar que famílias assim atingidas demonstrem afeto pelos EUA. Um segundo exemplo: o quadro de tensões no Oriente Médio está distante de uma solução. Que cessem a ocupação e a colonização das terras palestinas por Israel, que não mais se enviem mísseis contra campos de refugiados palestinos. Sem uma solução de paz, justa para israelenses e palestinos, os militantes movidos pelo ódio continuarão a atuar.

Folha - O sentimento antiislâmico seria hoje tão forte quanto em 1972, quando do atentado palestino na Olimpíada de Munique?
Benjelloun -
Em verdade, vivemos momentos cíclicos de crise desde 1948, quando os palestinos foram expulsos de suas terras e se sucederam conflitos entre árabes e Israel. Basta conversar com as pessoas em aldeias da Líbia ou do Egito para colher opiniões sobre o paradoxo da posição dos EUA em muitos desses episódios. "Se é um país que defende as liberdades, ele deveria se posicionar do lado dos mais fracos", ouvi muitas vezes. O atentado de Munique, por mais condenável, bárbaro e injustificável que tenha sido, foi no fundo uma maneira de chamar a atenção mundial para a persistência do problema palestino.

Folha - Antes mesmo de 1948 o mundo árabe não teria tido sua imagem desfavorecida pelo colonialismo europeu?
Benjelloun -
Isso é verdade. O colonizador enxerga o colonizado como um inferior. Mas a descolonização ocorreu há quatro décadas, e desde então o mundo árabe teve a infelicidade de reunir governantes que não promoveram o desenvolvimento econômico e não criaram padrões que lhes dessem respeitabilidade internacional. Mesmo os emirados do Golfo utilizaram os petrodólares para equipar seus Exércitos e enriquecer um punhado de famílias.

Folha - Seria essa a raiz de um mal-entendido?
Benjelloun -
O islamismo é mal compreendido. Li dia desses que na França as livrarias estão vendendo grande quantidade de exemplares do Alcorão. Mas não é nele que estão as respostas para a compreensão dessa cultura e dessa civilização. Elas estão na literatura, nos estudos econômicos, políticos, sociológicos. Que, aparentemente, não despertam a mesma curiosidade do público.

Folha - O atentado de Oklahoma, em 1995, foi praticado pela extrema-direita norte-americana. Mas não se assistiu na época uma caça aos direitistas. Por que?
Benjelloun -
Em verdade, existe uma diferença na percepção do terrorismo, por mais que ele seja sempre e visceralmente condenável. Os atentados na Irlanda ou na Espanha têm como autores cidadãos ocidentais. A Espanha, que tem no turismo externo uma grande fonte de renda, nunca foi vítima de campanhas que a considerassem perigosa para os estrangeiros. Mas no Egito um atentado provocou o cancelamento maciço de vôos e excursões. Há dois pesos e duas medidas.

Folha - São os únicos exemplos que o sr. tem para dar?
Benjelloun -
Eu também citaria o caso do escritor francês Michel Houlebecq, cujo romance "Plateformes", lançado em agosto, traz dos árabes uma visão racista e difamatória. Perguntei a amigos o que ocorreria caso se tratasse de um romance anti-semita. A indignação seria com certeza geral.

Folha - A visita do presidente Bush a uma mesquita não foi um gesto apaziguador?
Benjelloun -
É logicamente um gesto positivo. Mas se iniciativas como essa não se multiplicarem, os muçulmanas continuarão a conviver com o medo.

Folha - O sr. constata esse medo também na França?
Benjelloun -
Eu constato esse medo dentro de minha própria casa. Dia desses minha filha menor, de sete anos, procurou-me para dizer que "os muçulmanos são gente do mal". Precisei então explicar que o islamismo nunca prometeu o paraíso para os terroristas, e que entre nós os assassinos também vão para o inferno.


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