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O humanismo acuado pela injustiça
Em clima de emoção ainda exacerbada, é difícil distinguir uma religião dos desvios que ignorantes podem praticar
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JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Tahar Benjelloun, 57, escritor marroquino radicado na França, narra a
cena em que sua filha de
sete anos o procurou há dias para
saber "se é verdade que os muçulmanos são gente do mal".
A opinião, por mais simplista e
caricatural que seja, é um novo
subproduto dos atentados cometidos em Washington e Nova
York, e cujos autores Benjelloun
qualifica de "ignorantes" dos fundamentos islâmicos.
Benjelloun é autor de 25 livros,
dois deles publicados em 2000 no
Brasil: "Os Frutos da Dor" (Record) e "O Racismo Explicado a
Minha Filha" (Via Lettera).
Leia abaixo os principais trechos de sua entrevista.
Folha - O sr. acredita ser possível
conter o sentimento antiislâmico
despertado pelos atentados em solo norte-americano?
Tahar Benjelloun - Não será fácil,
sobretudo porque são de carne e
osso aqueles que utilizaram o Islã
para cometer esses crimes. Nesse
clima de emoção ainda exacerbada, é difícil para as pessoas distinguir uma religião e sua cultura
dos desvios catastróficos que ignorantes podem praticar. É preciso, de qualquer modo, insistir no
fato de que o islamismo é uma religião de fundamentos humanistas, e que no Alcorão não há um
único versículo que justifique o
assassinato ou o suicídio. São atos
claramente proibidos e punidos
pela religião muçulmana.
Folha - Mas a questão não é teológica. Ela se tornou política.
Benjelloun - Com certeza. Daí
derivam as dificuldades de esclarecê-la às pessoas.
Folha - Os países árabes teriam
credibilidade para fazer algo?
Benjelloun - Os mundos árabe e
muçulmano não foram hábeis na
propagação de uma imagem mais
apropriada do islamismo. Da
mesma forma com que não demonstraram competência na
neutralização de grupos de extremistas que, dentro de suas fronteiras, exercem suas atividades.
Folha - Mas esses grupos não
atuam a partir do nada. Eles evocam sempre algum pretexto.
Benjelloun - Isso é exato, e cito
dois exemplos. As pessoas tendem a ignorar que há anos a aviação norte-americana bombardeia
alvos civis iraquianos. A população, já vítima da ditadura de Saddam Hussein, torna-se também
vítima da ação de uma superpotência. Digamos que não se pode
esperar que famílias assim atingidas demonstrem afeto pelos EUA.
Um segundo exemplo: o quadro
de tensões no Oriente Médio está
distante de uma solução. Que cessem a ocupação e a colonização
das terras palestinas por Israel,
que não mais se enviem mísseis
contra campos de refugiados palestinos. Sem uma solução de paz,
justa para israelenses e palestinos,
os militantes movidos pelo ódio
continuarão a atuar.
Folha - O sentimento antiislâmico
seria hoje tão forte quanto em
1972, quando do atentado palestino na Olimpíada de Munique?
Benjelloun - Em verdade, vivemos momentos cíclicos de crise
desde 1948, quando os palestinos
foram expulsos de suas terras e se
sucederam conflitos entre árabes
e Israel. Basta conversar com as
pessoas em aldeias da Líbia ou do
Egito para colher opiniões sobre o
paradoxo da posição dos EUA em
muitos desses episódios. "Se é um
país que defende as liberdades, ele
deveria se posicionar do lado dos
mais fracos", ouvi muitas vezes. O
atentado de Munique, por mais
condenável, bárbaro e injustificável que tenha sido, foi no fundo
uma maneira de chamar a atenção mundial para a persistência
do problema palestino.
Folha - Antes mesmo de 1948 o
mundo árabe não teria tido sua
imagem desfavorecida pelo colonialismo europeu?
Benjelloun - Isso é verdade. O
colonizador enxerga o colonizado
como um inferior. Mas a descolonização ocorreu há quatro décadas, e desde então o mundo árabe
teve a infelicidade de reunir governantes que não promoveram o
desenvolvimento econômico e
não criaram padrões que lhes dessem respeitabilidade internacional. Mesmo os emirados do Golfo
utilizaram os petrodólares para
equipar seus Exércitos e enriquecer um punhado de famílias.
Folha - Seria essa a raiz de um
mal-entendido?
Benjelloun - O islamismo é mal
compreendido. Li dia desses que
na França as livrarias estão vendendo grande quantidade de
exemplares do Alcorão. Mas não
é nele que estão as respostas para
a compreensão dessa cultura e
dessa civilização. Elas estão na literatura, nos estudos econômicos, políticos, sociológicos. Que,
aparentemente, não despertam a
mesma curiosidade do público.
Folha - O atentado de Oklahoma,
em 1995, foi praticado pela extrema-direita norte-americana. Mas
não se assistiu na época uma caça
aos direitistas. Por que?
Benjelloun - Em verdade, existe
uma diferença na percepção do
terrorismo, por mais que ele seja
sempre e visceralmente condenável. Os atentados na Irlanda ou na
Espanha têm como autores cidadãos ocidentais. A Espanha, que
tem no turismo externo uma
grande fonte de renda, nunca foi
vítima de campanhas que a considerassem perigosa para os estrangeiros. Mas no Egito um atentado
provocou o cancelamento maciço
de vôos e excursões. Há dois pesos e duas medidas.
Folha - São os únicos exemplos
que o sr. tem para dar?
Benjelloun - Eu também citaria o
caso do escritor francês Michel
Houlebecq, cujo romance "Plateformes", lançado em agosto, traz
dos árabes uma visão racista e difamatória. Perguntei a amigos o
que ocorreria caso se tratasse de
um romance anti-semita. A indignação seria com certeza geral.
Folha - A visita do presidente
Bush a uma mesquita não foi um
gesto apaziguador?
Benjelloun - É logicamente um
gesto positivo. Mas se iniciativas
como essa não se multiplicarem,
os muçulmanas continuarão a
conviver com o medo.
Folha - O sr. constata esse medo
também na França?
Benjelloun - Eu constato esse
medo dentro de minha própria
casa. Dia desses minha filha menor, de sete anos, procurou-me
para dizer que "os muçulmanos
são gente do mal". Precisei então
explicar que o islamismo nunca
prometeu o paraíso para os terroristas, e que entre nós os assassinos também vão para o inferno.
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