São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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ÁSIA CENTRAL
De Ivã, o Terrível, à Guerra da Tchetchênia, russos não conseguiram subjugar muçulmanos

Onde o nome da religião é petróleo


Nem mesmo as sete décadas de comunismo conseguiram eliminar o islamismo daquela parte do planeta; as raízes lançadas pelo islã resistiram à passagem do tempo, aos ataques da Rússia dos czares e à opressão comunista


JOSÉ ARBEX JR.
FREE-LANCE PARA A FOLHA

É impossível entender a história da Rússia sem levar em conta a sua profunda imbricação com o islã. As formosas cúpulas multicoloridas que adornam a catedral de São Basílio, na praça Vermelha, em Moscou, são testemunhas silenciosas dessa história.
Foram construídas por Ivã, o Terrível, em meados do século 16, para simbolizar as cabeças decepadas de oito chefes muçulmanos que defendiam Kazan, a capital de um grande império islâmico na Ásia Central, sobre cuja destruição a Rússia cristã ascendeu à condição de Estado centralizado.
No mundo contemporâneo, a "questão islâmica" continua ocupando um lugar determinante na história russa. Está na origem da invasão do Afeganistão e sua desastrosa ocupação pelo Exército Vermelho (1979-1989), foi decisiva para o lançamento da perestroika que desembocou no fim da União Soviética, e continua sendo o "nó górdio" da Guerra da Tchetchênia.
A mera estatística demonstra sua importância geopolítica para a Rússia. Em dezembro de 1991, quando foi formalizada a extinção da URSS e criada a Comunidade de Estados Independentes (CEI), a população islâmica das antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão) e da Ásia central (Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Casaquistão) compunham 22% da população da URSS.
Sintomaticamente, sete décadas de comunismo não conseguiram eliminar o islamismo daquela parte do planeta. As raízes lançadas pelo islã resistiram ao tempo, aos ataques da Rússia dos czares e à opressão comunista.
A Revolução de 1917, que enterrou o czarismo, não concedeu aos povos islâmicos sua ambicionada (e prometida por Lênin) autonomia. A partir dos anos 20, Josef Stálin moveu uma feroz perseguição contra os líderes muçulmanos das repúblicas islâmicas, anexadas à URSS. Em 1928, aboliu o alfabeto árabe, fechou mesquitas e centros de ensinamento religioso.
Stálin transformou as repúblicas islâmicas soviéticas em um imenso e perigoso barril de pólvora, jamais desarmado por seus sucessores no Kremlin. O temor latente de uma explosão contribuiu para convencer Leonid Brejnev a ordenar a invasão do Afeganistão.
Brejnev fez um jogo arriscado, procurando estancar ao máximo os efeitos da "revolução xiita". Talvez não tivesse mesmo alternativas, dentro de sua lógica, imperial e repressiva (a mesma lógica faria com que Washington e Moscou armassem Sadam Hussein para declarar guerra ao Irã).
Se a invasão do Afeganistão, por si só, distanciou ainda mais o islã de Moscou, a vitória de Khomeini acirrou os ânimos. Não por acaso, uma das primeiras providências adotadas por Mikhail Gorbatchov ao assumir o poder, em 1985, foi iniciar um processo que tinha por objetivo assegurar a crescente autonomia religiosa e nacional das comunidades islâmicas.
A eclosão, em plena perestroika, da disputa entre a Armênia e o Azerbaijão pela posse do território do alto Karabaj, foi apenas um sinal visível das tensões acumuladas no mundo islâmico.
O território, habitado por uma maioria de armênios (cristãos ortodoxos), fica dentro do Azerbaijão (muçulmano). O problema é que o Karabaj foi cedido por Stálin ao Azerbaijão nos anos 30. Aproveitando a abertura propiciada pela perestroika, a Armênia passou a reivindicar a posse do Karabaj. O renascimento do sentimento islâmico no Azerbaijão tornou-se incompatível com uma inevitável sensação de perda que seria provocado pela cessão do Karabaj à Armênia.
Ainda nos anos 80, muitos jovens islâmicos soviéticos, entusiasmados com os resultados da revolução no Irã, adotaram uma perspectiva radical, fundamentalista. Alegando razões religiosas, eles passaram a boicotar o serviço militar e iniciaram um movimento de oposição aos líderes muçulmanos que faziam alianças com as autoridades soviéticas.
Xiitas do Irã, sunitas da Arábia Saudita, fundamentalistas e radicais de todas as seitas tentaram influenciar ao máximo os muçulmanos da Ásia Central e do Cáucaso, que, durante décadas, foram isolados da comunidade islâmica mundial. Hoje, o mundo islâmico ainda vive uma grande agitação na Ásia Central e no Cáucaso.
O movimento fundamentalista conta, no Tadjiquistão, com os ulemás que dirigem o partido de oposição PRI (Partido do Renascimento Islâmico). No Uzbequistão, onde está a sede da Direção Espiritual dos Assuntos Religiosos para a Ásia Central, outro PRI exerce uma importante oposição.
No Cáucaso, não apenas não foi resolvida a questão do Karabaj, como os conflitos entre Moscou e a vizinha Tchetchênia, no final de 1994, criaram ainda maior intranqüilidade entre os muçulmanos, que temem a eventualidade de uma nova intervenção russa.
O que está em jogo na Tchetchênia, travestido de "conflito religioso", é a disputa pelo controle da economia do petróleo. Os cinco países da bacia do Cáspio -Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão- possuem reservas estimadas em 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás.
Apenas Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão contêm mais petróleo e gás do que o Golfo. As maiores empresas petrolíferas dos EUA concluíram ou estão concluindo acordos bilionários com esses países (exceto o Irã) para explorar suas reservas.
Acontece que a Tchetchênia é um "centro nevrálgico" no mapa do petróleo da Ásia Central. Está situada sobre um dos principais oleodutos que ligam a Rússia ao mar Negro, passando pelo Bósforo, na Turquia, e chegando ao mar Mediterrâneo.


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