Livraria da Folha

 
04/08/2010 - 15h24

Mito da madrasta má gera desconfianças e conflitos a enteados, diz livro

ARIADNE ARAÚJO
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Livro ensina a lidar com os desafios da família moderna
Livro da Larousse ensina a lidar com os desafios da família moderna

A ideia é antiga e povoa o nosso imaginário coletivo. Basta lembrar dos contos de fadas, onde jovens órfãos e desprotegidos comem o pão que o diabo amassou nas unhas de malvadas madrastas. Cinderela e Branca de Neve que o digam.

Em "Os meus, os teus, os nossos - lidando com os desafios da família moderna" (Larousse), Gladis Brun alerta para as armadilhas do jogo de tensões e poder entre enteados e novos companheiros dos pais em famílias recompostas e dá dicas para a segunda mulher não virar a "má-drasta" da história.

Nos contos de fadas, na vida real também. Terapeuta de família, a autora conhece de cor e salteado o bê-á-bá das crises conjugais, divórcios e recasamentos. Estas novas famílias, com filhos do primeiro casamento, têm lição a aprender. A crença de que um grande amor supera tudo, inclusive as mágoas herdadas de uma recente separação, pode nem sempre funcionar. Quem passou por isso sabe o que é pisar em ovos com esta nova tribo: enteados, madrastas, padrastos, ex-maridos, ex-esposas, ex-sogros e ex-sogras, novos avós e avôs, novos irmãos.

No cotidiano, a coisa pode esquentar, mesmo ferver. Frases como "você não é a minha mãe" ou "na casa da minha mãe eu posso comer o que eu quiser" são lugares comuns nestes casos. Também as provocações daquele adolescente rebelde que teima em arruinar o humor da nova companheira do pai botando os pés na mesa ou ouvindo música ensurdecedora. Exemplos não faltam. No livro, Gladis Brun coloca o leitor direto dentro de situações-problemas comuns vivenciadas pela maioria dos casais em recasamentos.

Calma! Segundo Gladis, não existe família instantânea. O sábio conselho é dar tempo ao tempo e, muito importante, negociar, sempre. Para ela, uma família recomposta é como uma nova nação que se forma. E, nesse caso, cada centímetro de território a ser conquistado será resultado de uma complexa e exaustiva negociação. Afinal, lembre-se, aquelas coisinhas miúdas que azedam o cotidiano podem se transformar em uma grande e incontrolável "pororoca" formada pelo encontro de diferentes regras vindas das duas famílias anteriores.

As estatísticas mostram que obstáculos como estes podem levar a pique as relações de famílias de recasamento. O índice de divórcio em segundos casamentos é duas vezes maior e aumenta ainda mais no terceiro casamento. Sem garantia de happy end, então. Mesmo sem end, diz Gladis. Porque para ela, o único end é a morte. O que é real e o que é certo para estas novas famílias é a compreensão que esta é uma longa estrada, um processo cheio de aprendizado e de permanente construção.

Leia trecho do livro "Os meus, os teus, os nossos - lidando com os desafios da família moderna" (Larousse).

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Há uma dificuldade histórica nas relações entre mães e filhas, mas a presença de uma madrasta atrai toda a negatividade, deixando que a mãe recupere seu lugar de boa. O papel da madrasta reúne muitos aspectos carregados e difíceis do recasamento. A santificação e a idealização da figura materna manifesta-se no imaginário em ditados do tipo: "mãe, só tem uma" ou "em coração de mãe sempre cabe mais um" ou em versos como " ser mãe é padecer no paraíso". Nessa peça em que brilha, como protagonista, essa entidade acima do bem e do mal, santa entre todas, caberá eternamente à madrasta o papel de vilã. Todos os atos e pensamentos da "intrusa" tendem a ser vistos e avaliados pelo seu aspecto negativo. Assim, quando Adréa introduziu novos hábitos alimentares na família, foi logo criticada como pão-duro e incapaz de administrar o lar. Mas, para Andréa, o conceito alimentar implicava sobriedade, qualidade e elegância. Para ela, comer demais faz mal à saúde, engorda e revela falta de educação. Para os filhos de Alberto, durante muito tempo, esses novos hábitos foram um horror.

As palavras nunca são inocentes e têm um poder enorme. Nos transportam para mundos maravilhosos, nos enchem de medo ou nos magoam de forma às vezes irreparável. Não tendo outra nomeação para madrasta,mesmo que a situação seja diferente, podemos supor que, em algum lugar dentro de nós, essas imagens associadas a perigo são revisitadas. Nessas horas, nos deparamos com nossas próprias desconfianças. Somos sacudidos para que ativemos nossas proteções contra os vilões - se somos crianças - ou, se estamos no papel de pai, para sermos mais eficientes do que o pai de Cinderela, que na história estava sempre ausente.

No mundo mágico, os algozes estão sempre prontos a destruir vítimas puras e inocentes. Na vida, no entanto, não vamos encontrar mocinhos sempre bonzinhos enfrentando bandidos horrorosos. O bem e o mal não ficam separadinhos e arrumadinhos como nos enredos infantis. Somos uma mistura de bom e mau, segundo o momento, o contexto e o olhar de quem nos avalia. Como já vimos, Andréa percebe a situação com Marcelo de forma diferente de Joana e, seguramente, ambas falam a verdade. Mas cada uma vê os mesmos fatos a partir de posições em que selecionam algumas informações, deixando de lado outras. Somos, inevitavelmente, vítimas e algozes de nós mesmos e daqueles que nos cercam. Sempre temos uma quota de autoria em todas as dimensões de nosso existir, pois tudo depende da interpretação que damos aos acontecimentos. E nossas reações são coerentes com nossas "leituras". Nunca estamos isolados e livres dessa dança em que tantos participam, cada um com sua parcela de responsabilidade, já que cada um de nós faz, permanentemente, sua própria edição dos fatos da vida.

Sendo assim, torna-se injusto - e até absurdo - achar que na vida real a madrasta é sempre malvada, ciumenta e invejosa, e a enteada, sempre inocente e boazinha. Cada uma toma parte ativa nessa história e essa participação será mais ou menos perturbadora conforme a de outros personagens importantes na trama. Afinal, para existir uma boa "má-drasta", bem malvada, como nos filmes, o pai tem, também, que atuar nesse enredo.

 
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