Livraria da Folha

 
17/08/2010 - 16h19

Sergio Britto questiona sua descoberta da homossexualidade; leia trecho

da Livraria da Folha

Leonardo Bittencourt/Divulgação
Sergio Britto relembra seus 65 anos anos de carreira, a infância e a descoberta do sexo; ator questiona as origens orientação sexual
Britto relembra seus 65 anos anos de carreira, a infância e a descoberta do sexo; ator questiona as origens da orientação sexual

Polêmico, o ator Sergio Britto comenta já no primeiro capítulo de suas memórias sobre a sua homossexualidade. Direto, com um humor ácido, não poupa detalhes de suas primeiras experiências.

Em entrevista à Folha no último sábado (14), Britto disse que sua sinceridade pode tê-lo prejudicado, mas não abre mão dela ao relembrar de seus 65 anos de carreira no teatro.

Em "O Teatro e Eu" retorna até as origens de sua família, quando avôs e avós migraram para o Brasil, e segue narrando as experiências que influenciaram suas decisões pessoais e profissionais.

Sua relação com a mãe, a Alzirinha, é continuamente questionada. O cuidado exagerado que a fez mantê-lo sob vigilância durante a adolescência é um dos motivos que levam o ator a questionar a razão de sua homossexualidade. Sua tentativa de suicídio e outras atitudes da juventude são observadas, hoje, como uma tentativa de libertação.

Leia abaixo o trecho em que Britto relembra a descoberta do sexo:

*

Chego agora a uma interrogação: até que ponto minha homossexualidade tem a ver com a minha inexperiência sexual, a minha falta de liberdade para ir e vir nas madrugadas, como os jovens da minha idade o faziam? Lembro que um dia - eu tinha 16 anos, acho que foi isso - um amigo da família, o Jorge, me deu o endereço de uma prostituta. Eu tinha vontade de ser igual aos outros, eu fui. De saída, eu disse: "Olha, eu não sei nada, me ajuda". Eu pedi à mulher, uma mulata comprida, quase bonita. Ela não me deu bola, não me ajudou em nada. Acabei agarrado a ela, ejaculando nas coxas da mulher pouco generosa. Será que ela podia ter me ajudado? Ou a homossexualidade já era o meu caminho?

Nas nossas férias em São Lourenço, todo ano o mesmo caminho: uma estação de águas com a família. Quando eu tinha uns 17, 18 anos, isso deve ter sido em 1940 ou 1941, tive duas experiências estranhas em São Lourenço. Éramos um grupo jovem, moças e rapazes, e saíamos a passear. A Alzirinha já tinha menos impulso de guardião da minha vida. Em cima de um morro, de repente, me vi sozinho com um rapaz mais velho que eu. Ele me masturbou, um gozo muito medroso e sem maior expressão.

Ela era bonitinha. Foi nessa mesma temporada. A turma que estava no hotel me dizia: "Ela não é virgem, e você, como é o mais bonito e o mais velho da turma, é que tem que comer a moça". Um dia, eu e ela nos perdemos numa floresta que havia na estação de águas. Agarrei a menina, toquei nela. Não sei como, mas fui bastante habilidoso. Ela começou a chorar. Foi ela que se abriu: "Fui desvirginada por um tio que vivia me perseguindo". Começou um choro que não parava mais. Acabamos agarrados um no outro, gozamos, ejaculei mais uma vez nas coxas de uma mulher e quase adormecemos no meio da floresta; um começo de namoro que não consegui manter, ela era doente demais, doente psicótica demais para a minha idade.

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Chegamos a janeiro de 1946. Vou ao baile do High Life, na rua Santo Amaro, no Catete, subida de Santa Teresa. O clube ficou conhecido pelos memoráveis bailes de carnaval, promovidos a partir de 1910. Lá apagavam as luzes de vez em quando. Quinze minutos, dava tempo para acontecer muita coisa. Eu estava tomando uísque. Quando a luz apagou, a mulher veio e me comeu. Não há outra maneira para contar a história: ela me comeu e ponto. Quando pensei em agradecer, ela já tinha ido embora. Saí do High Life de porre. Fui para Copacabana, a família estava hospedada num hotel na rua Duvivier.

Fui até a praia, apanhei sol, até me queimei na testa porque dormi na areia sem usar nenhuma proteção. Levantei, fui para o hotel. A família acordou, foi para a praia. Eu fiquei sozinho, levantei, fui ao banheiro, peguei uma lâmina gilete e cortei os pulsos. Quando fiz isso, não pensei em nada, não houve desespero ou revolta contra alguma coisa que me incomodava e de que eu quisesse me livrar.

O Suicídio é sempre uma forma de se libertar de algo que incomoda. Eu não pensei em nada, eu não senti nada. Cortei os pulsos, foi só isso. Perdi muito sangue, escorreguei no chão e ali fiquei, até que o meu amigo, a minha primeira paixão, chegou para me levar à praia.

Acordei no Miguel Couto: "O que é isso? Eu nunca quis me matar." Eu não admitia a ideia do suicídio. Eu tinha tido um impulso, fui ao banheiro e peguei a lâmina - e, repito, sem consciência do que estava fazendo.

Voltamos de bonde, eu e o amigo. Era carnaval, eu vim, de pulsos amarrados, mas cantando e pulando dentro do bagageiro do bonde. O amigo me olhava de olhos arregalados. No hotel, meu pai e minha mãe me esperavam. "Não se preocupem, isso não vão se repetir, foi um acidente, eu não quis me matar."

Os olhos de mamãe eu consegui enfrentar, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Papai foi mais difícil: ele me olhava como se estivesse olhando um estranho, não era o filho dele aquele moço com os pulsos amarrados. Mamãe sugeriu que pedíssemos o almoço no quarto. Eu insisti: "Vamos almoçar lá em baixo". Entramos no restaurante do hotel, um certo silêncio se fez. Todos me olhavam, disfarçando, mas olhando o escândalo que era eu, com os pulsos levantados, encostados no meu peito. Pura exibição. Depois me veio uma ideia mais sólida: fora tudo um ato de teatro, o meu primeiro momento teatral de uma certa intensidade.

O tempo passou e, mais tarde, compreendi que toda essa encenação fazia parte do processo de me libertar.

Naquele início de 1946, antes do High Life e da gilete, eu tinha possuído alguém; era o meu amigo, o mesmo que me levou ao Miguel Couto.

Foi bom, muito bom, houve entrega da parte dele; eu, afinal tive um orgasmo completo. Os problemas começaram logo depois desse momento tão delicado, nós tínhamos, eu, 22 anos, ele, 21. Ele chorou: "Você agora vai me chamar de fresco, não vai me respeitar mais". Eu, num impulso meio parecido com aquele "quero" de 1945, respondi: "Não, eu amo você, mais do que amava antes". Ele me contou: "Tenho uma mulher mais velha com quem faço amor. Agora com essa nossa relação, não sei, não...". E lá veio o drama, as dores do homossexual. Eu mal tinha acabado de viver aquele instante que parecia perfeito, comecei a conhecer logo os problemas de viver uma relação com outro homem.

Estou contando tudo na maior confusão, é que minha história é toda de idas e vindas, progressos e retrocessos.

*

O Teatro e Eu
Autor: Sergio Britto
Editora: Tinta Negra
Páginas: 416
Quanto: R$ 65,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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