Livraria da Folha

 
20/08/2010 - 22h15

Jovem tira calcinha em público para se descobrir mulher; leia trecho de "Dispa-me!"

MARCELO JUCÁ
colaboração para a Livraria da Folha

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Que segredos as roupas podem guardar? Memórias ou desejos inconscientes?
Roupas e segredos: memórias ou desejos inconscientes?

"Dispa-me! O que Nossa Roupa Diz Sobre Nós" (Zahar) é um curioso e sensual ensaio a respeito de modelitos e pedaços de pano que estão muito além da futilidade.

As roupas são partes de nossa identidade, uma segunda pele. As escolhas inconscientes de cores, tecidos, formatos e peculiaridades só são vistas no mundo da moda. Um pouco de cada intimidade externada, para todos verem e opinarem.

"Este é um livro sobre timidez, inveja, rivalidade, desejo, autoafirmação, saudade, amor, sedução, pertencimento, feminilidade, traição, renascimento, compulsão, ousadia... Este é um livro sobre roupas", como bem resume a orelha da obra, das psiquiatras e psicanalistas Catherine Joubert e Sarah Stern.

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E dá para dizer o contrário? A mulher, ao usar uma saia mais curta, quer passar uma mensagem (mesmo que às vezes inconscientemente). Do mesmo modo, o uso de uma camiseta branca justa, à la Marlon Brando, transmite indícios sensuais percebidos pelas jovens.

Os exemplos são variados. E nesta ciranda entram a perversão, o voyerismo, a compulsão e a repetição. Em 19 histórias, as autoras analisam de uma forma bem descontraída as principais nuances (e a nudez) das roupas e os corpos.

Para Joubert e Stern, "colocar sempre o mesmo vestido, usar apenas preto, ser fanática por shoppings, guardar cuidadosamente as roupas daqueles que nos deixaram - todos esses são comportamentos no vestir que desenham uma relação sempre diferente com as roupas, em que a história pessoal prevalece." As psicanalistas completam. "Da menininha trajada como um menino aos vestidos de princesa dignos de contos de fadas, as roupas são uma tela na qual dia após dia inscrevem-se nossas alegrias e nossos sofrimentos."

Em "Dispa-me! O que Nossa Roupa Diz Sobre Nós", o leitor descobrirá qual o uso que fazemos das roupas, às vezes, até sem perceber. As autoras explicam, contudo que o livro não parte do clichê "diga-me como te vestes e te direi quem és", afinal, uma cor e um modelo possuem diferentes significados para cada pessoa.

Leia trecho da história SEM CALCINHA ou Como viver descoberta

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Fetiche?
Simples fetiche?

No jardim-de-infância, eu elegi minha melhor amiga, Valérie (uma menininha com os dentes todos cariados), porque ela usava uma calcinha igual à minha, uma minúscula calcinha branca com morangos vermelhos, que eu entrevira sem querer quando ela se sentara.

Na selva dos meus primeiros contatos sociais, esse critério me pareceu tão justo quanto qualquer outro, e me lancei à abordagem dessa estranha familiar no recreio.

Seguiram-se longos meses de escravidão amistosa, durante os quais a pequena Valérie exigiu de mim um presente novo a cada recreio: pequenas pulseiras de pérolas, minha medalha de batismo, fivelas multicoloridas, bombons e até mesmo o anel de família da minha mãe passaram para as mãos dela.

Eu me desfazia de tudo freneticamente para cobrir Valérie de presentes, aplacar seu insaciável apetite e servir à sua tirania, legítima aos meus olhos.

Exceto a calcinha, nada tínhamos em comum: Valérie morava com a mãe e três irmãos num pequeno apartamento escuro, uma gritaria só, e eu, embaraçosamente, sentia-me no dever de reparar as injustiças que a vida lhe fazia.

O desconforto dessa relação, que a mamãe desaprovava e que me obrigava a várias dissimulações, era compensado pela embriaguez da minha bondade para com aquela infeliz criatura. Apesar de todos os meus esforços, nossa amizade não passou do jardim-de-infância, e em seguida perdemos completamente o contato.

Dessa experiência, conservei a ideia de que uma calcinha podia mudar a natureza das minhas relações com meus pares, sem entretanto encontrar provas disso - até um certo dia de julho. Fazia muito calor em Paris, e eu enfrentava pela terceira vez na semana uma visita guiada a uma exposição de Botticelli.

O grupo que eu acompanhava era composto por homens de negócios americanos, silenciosos e disciplinados, que escutavam atentamente as afirmações do conferencista, literalmente idênticas dia após dia.

Na terceira sala, não aguentando mais, escapei para o banheiro. Este era espaçoso, com um imenso espelho dourado no qual eu me via inteirinha de pé. Senti prazer ao encarar minha imagem. Examinei com satisfação meu talleurzinho preto, sóbrio e chique, de boa qualidade e preço razoável.

Subi um pouco a saia exibindo as pernas para avaliar o efeito produzido e, como estava sozinha, executei uma pequena dança lasciva. Isso teve como efeito me imprimir uma nova energia e, empolgada pela minha espontaneidade, levantei a saia até em cima, descobrindo minha minúscula calcinha de renda branca. De repente, tive a inspiração de tirá-la. Nos corredores que conduziam aos salões principais, quase dei meia-volta, mas reprimir com firmeza minha falta de audácia e continuei em direção ao grupo.

Todos os meus sentidos estavam em alerta. Eu sentia o ar frio contra o meu sexo e meu rosto ardendo. O exercício era arriscado, e eu me sentia como uma espiã de alto escalão em missão especial, cercada pelo perigo. O menor olhar poderia revelar o meu segredo, um rubor mal contido poderia me trair. Tensa, eu escapulia por entre os grupos, sentindo a presença dos meus companheiros em volta de mim como zonas de calor difusas, de intensidades variáveis.

Quando um deles, por descuido, me triscava, um longo arrepio me percorria o corpo como um gole de água gelada. Meu cérebro trabalhava a toda velocidade, participando com desenvoltura das conversas para melhor camuflar minha agitação. O tempo voou. O almoço, ainda sem calcinha, foi um dos mais bem-sucedidos que eu organizara até então.

Vários dos clientes americanos insistiram para que eu lhes desse o número do meu telefone e, quando se despediram, me parabenizaram pelo nível do meu inglês. A partir desse dia, uso eventualmente a seguinte estratégia: diante de um almoço chato, uma reunião muito séria ou um coquetel que se estende, tiro discretamente a calcinha e observo a transformação do mundo ao meu redor.

Análise

Que haveria de mais banal que uma calcinha: elemento básico do vestuário, porém carregado de tantas questões? A menina escolhe sua melhor amiga por um critério de similitude, mas não um critério qualquer: trata-se do mais íntimo, oculto aos olhos dos outros. O que as aproxima, o que constitui o interesse de sua relação, é um elemento secreto que as outras pessoas, em particular a mãe, não podem compreender.

Trata-se, para além da calcinha, do que faz com que elas sejam meninas, e não meninos, ainda que em posições ligeiramente defasadas. Mediante sua demanda de amizade, a menininha dirige à pequena Valérie uma questão sobre o sexo feminino.

Uma relação entre as duas é estabelecida "para e contra tudo", tendo como aval um sinal de reconhecimento oculto. Graças a ele, a criança escapa, talvez pela primeira vez, da vontade da mãe. Nesse aspecto, essa amizade é libertadora, pois desafia as leis maternas. A transgressão continua no tráfico de pequenos objetos pertencentes à família da criança.

À exceção de suas calcinhas, tudo opõe as meninas, e sua disparidade faz nascer na narradora um sentimento paradoxal de dívida. Será que esse desvio foi criado pela saúde frágil de Valéria (os dentes cariados), por sua situação social ou pela ausência do pai no lar? A história não diz precisamente, mas a narradora sente "alguma coisa em excesso" em relação à outra menina. Ela precisa libertar-se do que a oprime, sem saber como nem por quê, e o ato de presenteá-la lhe proporciona, além de um sentimento de superioridade não desprezível, uma consciência tranquila.

Em contrapartida, separar-se da mãe comporta um risco: o de descobrir-se "faltante", incompleta. Com sua mãe, há excesso; sem ela, insuficiência. A menininha vê-se então numa posição paradoxal em relação à pequena Valérie: sente-se superior e ao mesmo tempo não "à altura". Os presentes vêm então amenizar sua fragilidade e lhe assegurar uma amizade de que ela se sente inconscientemente indigna.

Simultaneamente, exposta dessa forma, sem a proteção materna, a menininha descobre seu desejo por meio de sua proposta de amizade dirigida a Valérie. Como se essa brusca incursão fora da esfera materna iniciasse para ela um movimento pessoal, formasse um apelo por novos ventos que lhe abrissem a porta de seu desejo - e portanto o caminho de sua individualização.

O que se passa na idade adulta segue diretamente o fio do início do relato: a calcinha, objeto de uma fixação infantil, estabelece diretamente o laço entre as duas histórias, condensando as significações.

A jovem que tira a calcinha em sociedade transgride as regras de bom comportamento, herdeiras dos interditos parentais, e mais particularmente dos interditos maternos no que se refere ao corpo feminino. O pudor transmitido de mãe para filha é destroçado nessa experiência inédita. Por meio desse ato transgressivo, a menina trai mais uma vez sua mãe, liberta-se de sua influência, e o mundo muda aos seus olhos.

Um universo sem proteções e sem barreiras aparece, como se a calcinha fosse uma tranca aberta. O fato de tirá-la libera simbolicamente os interditos, e as fantasias de conotação sexual aproveitam-se disso para se desenvolverem.

Esse ato subtrai do mundo o seu verniz habitual; tudo se torna estranho e inquietante. A jovem sente-se diferente em relação a eles. Aqui, mais uma vez, a pergunta dirigida ao outro refere-se à identidade sexual. O fato de tirar a calcinha sexualiza a cena, revelando essa diferença fundamental: o grupo de colegas é substituído por homens e mulheres.

Para a protagonista, existe um interdito de origem materna que incide sobre sua relação com o mundo. Ela precisa abandonar elementos referentes à intimidade materna (o que faz através dos presentes e da calcinha) para atingir seu desejo e descobrir sua identidade de mulher.

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"Dispa-me! O que Nossa Roupa Diz Sobre Nós"
Autoras: Catherine Joubert e Sarah Stern
Editora: Zahar
Páginas: 160
Quanto: R$ 32
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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