Livraria da Folha

 
28/08/2010 - 12h52

Conto premiado de Neil Gaiman discute literatura fantástica; leia trecho

da Livraria da Folha

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Contos e poemas de Neil Gaiman com inspiração em música e religião
Contos e poemas de Neil Gaiman com inspiração em música e religião

Em entrevista à Livraria da Folha, Eduardo Spohr disse existir um preconceito com a literatura fantástica no Brasil. Para com Neil Gaiman, este preconceito se expande para todo o mundo.

No livro "Coisas Frágeis (Vol. 2)", coletânea de contos e poemas do escritor inglês, Gaiman dedica um dos textos ao processo de criar um romance. "Noivas Proibidas dos Escravos sem Rosto na Casa Secreta da Noite do Temível Desejo", que chegou a receber o Prêmio Locus de melhor conto em 2005, mostra um escritor preparando seu próximo romance.

O jovem autor pretende desenvolver uma obra realista, recusando-se a escrever literatura fantástica. O personagem considera este um gênero menor, algo trivial, utilizado como escapismo.

Conforme não consegue desenvolver a história, apresentada ao leitor intercalada com a narrativa de seu progresso, acaba se rendendo ao estilo que rejeita. E neste ponto Gaiman abre a discussão sobre a impossibilidade de escrever romances que representem a realidade com exatidão.

Leia abaixo um trecho do conto que integra o livro "Coisas Frágeis (Vol. 2)" :

*

Noivas Proibidas dos Escravos sem Rosto na Casa Secreta da Noite do Temível Desejo

I

Em algum lugar da noite, alguém escrevia.

II

Seus pés esmagando o cascalho, ela corria, desesperadamente, pelo caminho arborizado. Seu coração pulava no peito, seus pulmões pareciam a ponto de explodir, puxando hausto após hausto do frio ar noturno.

Seus olhos se fixavam na casa à frente, a única luz no quarto mais alto atraindo-a como a chama de uma vela atrai uma mariposa. Acima dela, e longe na cerrada floresta atrás da casa, criaturas da noite ululavam e grasnavam. Da estrada atrás de si, ela ouviu algo lançar um breve grito - um animalzinho vitimado por algum predador, ela esperava, porém sem ter certeza.

Corria como se tivesse as legiões do inferno em seus calcanhares, e não olhou nem uma vez para trás até chegar à entrada da velha mansão. À luz pálida da lua, as colunas brancas pareciam esqueléticas, como os ossos de um animal gigante. Ela se agarrou ao batente de madeira, puxando haustos de ar, olhando para trás no longo caminho, como se esperasse por alguma coisa, e então bateu na porta - timidamente, de início, depois mais forte. As batidas ecoaram pela casa. Ela imaginava, pelo eco que voltava, que lá de longe vinham batidas em outra porta, abafadas e mortas.

- Por favor! - gritou. - Se houver alguém aí, qualquer pessoa, por favor, deixe-me entrar. Eu suplico. Eu imploro. - Sua voz soava estranha aos seus ouvidos.

A luz bruxuleante no quarto mais alto diminuiu e sumiu, reaparecendo em janelas cada vez mais baixas. Uma pessoa, então, com uma vela. A luz desapareceu nas profundezas da casa. Ela tentou recuperar o fôlego. Pareceu que uma eternidade se passou antes que ouvisse passos do outro lado da porta e vislumbrasse uma nesga de luz de vela através de uma fenda no mal encaixado batente.

- Olá? - ela disse.

A voz, quando falou, era seca como ossos velhos, uma voz ressequida, que recendia a pergaminhos rachados e musgo de cemitério.

- Quem chama? - disse. - Quem está batendo? Quem está chamando, logo nesta noite?

A voz não a reconfortou. Ela olhou para a noite que envolvia a casa e então se endireitou, jogou suas madeixas negras para o lado e disse numa voz que, ela esperava, não traía nenhum medo: - Sou eu, Amelia Earnshawe, órfã recente e agora a caminho de assumir o posto de governanta dos dois filhinhos, um menino e uma menina, do lorde Falconmere, cujos olhares cruéis achei, durante a entrevista em sua residência londrina, em igual medida repelentes e fascinantes, mas cujo rosto aquilino assombra meus sonhos.

- E o que faz aqui, então, nesta casa, logo nesta noite? O Castelo Falconmere fica a quase cem quilômetros daqui, do outro lado dos pântanos.

- O cocheiro, um sujeito mal-humorado e mudo, ou fingia sê-lo, porque não formava palavras, mas exprimia suas vontades somente por grunhidos e gemidos, deteve sua parelha a mais ou menos dois quilômetros daqui, acredito, indicando por gestos que não iria além e que eu deveria descer. Quando me recusei a fazê-lo, ele me empurrou com violência da carruagem para a terra fria e, então, açoitando e assustando os pobres cavalos, descambou de volta por onde viera, levando minhas malas e meu baú. Gritei e gritei, mas ele não voltou, e pareceu-me que uma escuridão mais profunda se agitava na penumbra da floresta atrás de mim. Vi a luz na sua janela e... e... - Ela não conseguiu mais sustentar sua falsa bravura e começou a soluçar.

- Seu pai - disse a voz do outro lado da porta -, acaso seria o honorável Hubert Earnshawe?

Amelia engoliu as lágrimas. - Sim. Sim, era ele.

- E a senhorita... a senhorita diz ser órfã?

Ela pensou no pai, com seu paletó de tweed quando o redemoinho o tragou, jogando-o contra os rochedos e eternamente para longe dela.

- Ele morreu tentando salvar a minha mãe. Ambos se afogaram.

Ela ouviu o ruído surdo de uma chave virando na fechadura, depois os estrondos gêmeos de dois ferrolhos sendo abertos. - Bem-vinda, então, senhorita Amelia Earnshawe. Bem-vinda à sua herança, nesta casa sem nome. Sim, bem-vinda... logo nesta noite. - A porta se abriu.

O homem segurava uma vela negra de sebo; sua luz bruxuleante iluminava seu rosto por baixo, dando-lhe um ar irreal e fantasmagórico.

Poderia ser uma lanterna entalhada numa abóbora, ela pensou, ou um assassino bem entrado em anos.

Ele a convidou a entrar com um gesto.

- Por que o senhor fica repetindo isso? - ela perguntou.

- Fico repetindo o quê?

- "Logo nesta noite." Disse isso três vezes até agora.

Ele simplesmente a encarou por um momento. Então a chamou de novo, mexendo um dedo pálido. Quando ela entrou, ele aproximou a vela do rosto da moça e fitou-a com olhos que não eram exatamente loucos, mas estavam longe de ser sãos. Parecia examiná-la, e finalmente grunhiu e balançou a cabeça. - Por aqui. - Foi só o que disse.

Ela o seguiu por um longo corredor. A chama da vela lançava sombras fantásticas ao redor dos dois e, à luz dela, o relógio de pêndulo, as finas cadeiras e a mesa dançavam e cabriolavam. O velho remexeu em seu molho de chaves e destrancou uma porta na parede embaixo da escada.

Da escuridão à frente, veio um cheiro de mofo, poeira e abandono.

- Aonde estamos indo? - ela perguntou.

Ele balançou a cabeça como se não tivesse entendido. Então disse:

- Há quem seja o que é. E há quem não seja o que parece ser. E há quem só pareça ser o que parece ser. Lembre-se das minhas palavras, e lembre-se bem, filha de Hubert Earnshawe. Entendeu?

Ela fez que não. Ele começou a andar e não olhou para trás.

Ela seguiu o velho escada abaixo.

III

Bem longe dali, e muito tempo depois, o jovem lançou sua pena contra o manuscrito, respingando nanquim sépia sobre a resma de papel e a mesa de madeira polida.

- Não está bom - disse, desanimado. Ele pincelou um pingo de tinta que acabara de fazer na mesa com seu indicador delicado, manchando a teca de um marrom mais escuro, e então, distraidamente, esfregou o dedo no nariz, deixando uma mancha escura.

- Não, senhor? - O mordomo entrara quase sem ruído.

- Está acontecendo de novo, Toombes. O humor se infiltra. A paródia sussurra nas coxias. Descubro-me troçando das convenções literárias e zombando de mim mesmo e de toda a profissão do beletrismo.

O mordomo fitou seu jovem patrão sem pestanejar. - Creio que o humor seja tido em alta conta em certos círculos, senhor.

O jovem apoiou a cabeça nas mãos, esfregando a testa pensativamente com a ponta dos dedos. - A questão não é essa, Toombes. Estou tentando criar uma imitação da vida, uma representação exata do mundo como ele é, da condição humana. Em vez disso, me abandono, ao escrever, à paródia colegial das fraquezas de meus pares. Faço piadinhas. - Ele havia espalhado nanquim por todo o rosto. - Bem pequenas.

Do cômodo proibido no último andar da casa, partiu um uivo sombrio e lancinante que ecoou por toda a casa. O jovem suspirou. - É melhor alimentar a tia Agatha novamente, Toombes.

- Muito bem, senhor.

O jovem pegou a pena e distraidamente coçou a orelha com a ponta.

Atrás dele, na penumbra, estava o retrato de seu trisavô. Os olhos pintados haviam sido meticulosamente recortados muito tempo atrás, e agora olhos de verdade ocupavam o rosto do quadro, olhando para o escritor. Eles brilhavam como ouro velho. Se o jovem se virasse e os notasse, poderia pensar que eram os olhos dourados de algum grande felino ou de uma hedionda ave de rapina, se isso fosse possível. Aqueles não eram olhos de uma cabeça humana. Mas ele não se virou. Em vez disso, alheio a tudo, lançou mão de uma nova folha de papel, embebeu a pena no tinteiro de vidro e começou a escrever:

IV

- Sim... - disse o velho, pousando a vela negra sobre o harmônio silencioso.

- Ele é nosso amo e somos seus escravos, embora finjamos para nós mesmos que não é assim. Mas quando chega a hora, ele exige o que deseja, e é nosso dever e ímpeto fornecer-lhe... - Ele estremeceu e respirou fundo. Depois disse apenas: - O que ele deseja.

As cortinas, feito asas de morcego, tremiam e farfalhavam no caixilho sem vidro com a tempestade que se aproximava. Amelia apertava o lencinho rendado contra o peito, o monograma de seu pai à mostra. - E o portão? - perguntou num sussurro.

- Foi trancado à época do seu ancestral, e ele ordenou, antes de desaparecer, que permanecesse sempre assim. Mas ainda há túneis, dizem, que ligam a velha cripta ao cemitério.

- E a primeira esposa de sir Frederick...?

Ele balançou a cabeça tristemente. - Desesperadamente louca e, quando muito, uma medíocre tocadora de espineta. Ele espalhou o boato de que estava morta, e talvez alguns tenham acreditado.

Ela repetiu essas últimas quatro palavras mentalmente. Então olhou para ele, com uma nova determinação nos olhos. - E quanto a mim? Agora que eu soube por que estou aqui, o que me aconselha fazer?

Ele olhou ao seu redor na sala vazia. Então disse, com urgência:

- Fuja daqui, senhorita Earnshawe. Fuja enquanto é tempo. Salve sua vida, salve sua imortaargh...

- Minha o quê? - ela perguntou, mas assim que as palavras deixaram seus lábios escarlates, o velho estatelou-se no chão. Uma prateada seta de besta saía de sua nuca.

- Ele está morto - ela disse, surpresa e chocada.

- Sim - afirmou uma voz cruel da outra extremidade da sala. - Mas estava morto antes de hoje, garota. E acho que já estava morto havia uma eternidade.

Sob o olhar chocado dela, o corpo começou a apodrecer. A carne pingou, apodreceu e se liquefez, os ossos, expostos, pulverizaram-se e escorreram, até que não restasse senão uma massa pestilenta onde antes houvera um homem.

Amelia agachou-se ao lado dela e mergulhou o dedo na substância nauseabunda. Lambeu o dedo e fez uma careta. - O senhor parece ter razão, seja lá quem o senhor for - disse. - Calculo que estivesse morto havia quase cem anos.

V

- Estou tentando - disse o jovem à camareira - escrever um romance que reflita a vida como ela é, que a espelhe nos mínimos detalhes. No entanto, quando escrevo, tudo se torna trivialidade e uma grosseira galhofa. O que devo fazer? Hein, Ethel? O que devo fazer?

- Certamente não sei, senhor - respondeu a camareira, que era jovem e bonita, e chegara à grande casa, em circunstâncias misteriosas, algumas semanas antes. Ela apertou o fole mais algumas vezes, fazendo o fogo na lareira ganhar um brilho alaranjado. - Isso é tudo?

- Sim. Não. Sim - ele disse. - Pode ir, Ethel.

A garota pegou o balde de carvão, agora vazio, e atravessou o escritório a passos firmes.

*

Coisas Frágeis (Vol. 2)
Autor: Neil Gaiman
Editora: Conrad
Páginas: 168
Quanto: R$ 43,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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