Livraria da Folha

 
09/10/2010 - 11h10

Vargas Llosa odiou Lima desde o primeiro instante; leia trecho de "Sabres e Utopias"

da Livraria da Folha

"Conheci Lima quando já saía da infância, e é uma cidade que odiei desde o primeiro instante, pois fui muito infeliz ali", desabafa o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura 2010, em "Sabres e Utopias". O volume foi lançado no início deste mês pela editora Objetiva.

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Artigos de Vargas Llosa revelam sua visão sobre a América Latina
Artigos de Vargas Llosa revelam sua visão sobre a América Latina

Vargas Llosa explica que, esse período, além de coincidir com a separação de seus pais, implicou um afastamento de seus avós e tios e a submissão a uma disciplina imposta por um "homem severíssimo, que era, para mim, um desconhecido", ou seja, seu pai. "Minhas primeiras lembranças de Lima estão associadas a essa experiência difícil", esclarece.

Na obra, que reúne artigos sobre política, direitos humanos, literatura e artes plásticas, economia e história, o peruano observa de forma aguçada a recente história da América Latina.

Em alguns momentos, o leitor sente a mão pesada do escritor ao falar desde os regimes militares de direita às ditaduras de esquerda.

Ele não se esquece do Brasil e analisa a situação política atual. Critica a relação entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fidel Castro. O leitor também se depara com relatos comoventes sobre grandes nomes da literatura, como Euclydes da Cunha (1866-1909) e Jorge Amado (1912-2001).

Leia abaixo um trecho do primeiro capítulo ("A peste do autoritarismo") de "Sabres e Utopias", no qual Vargas Llosa relata, num misto de amor e ódio, como define, suas impressões de Lima.

*

O PAÍS DAS MIL FACES

Conheci Lima quando já saía da infância, e é uma cidade que odiei desde o primeiro instante, pois fui muito infeliz ali. Meus pais tinham se separado e, depois de dez anos, voltaram a viver juntos. Viver com meu pai implicava um afastamento de meus avós e tios e a submissão a uma disciplina imposta por um homem severíssimo que era, para mim, um desconhecido. Minhas primeiras lembranças de Lima estão associadas a essa experiência difícil. Morávamos em Magdalena, um bairro típico de classe média. Mas eu ia passar os fins de semana, quando tirava boas notas - era o meu prêmio - com uns tios em Miraflores, um bairro mais próspero, colado ao mar. Ali, conheci um grupo de rapazes e moças da minha idade, com quem compartilhei os ritos da adolescência. Isso era o que se chamava então de "ter um bairro": uma família paralela, cujo lar era a esquina, e com quem se jogava futebol, se fumava escondido, se aprendia a dançar mambo e a se declarar para as meninas. Em comparação com as gerações que vieram depois, éramos uns anjos. Os jovens limenhos de hoje fazem amor na mesma época da primeira comunhão e dão a sua primeira tragada de maconha quando ainda estão mudando de voz. Nós nem sequer sabíamos da existência das drogas. Nossas estripulias não iam muito além de ver escondidos os filmes proibidos - que a censura eclesiástica qualificava de "impróprios para senhoritas" - ou tomar um "capitão" - mistura venenosa de vermute com aguardente - no armazém da esquina antes de ir para a festa dos sábados, onde nunca se servia bebida alcoólica. Lembro de uma discussão muito séria que tivemos em nosso grupo de rapazes do bairro - tínhamos entre catorze e quinze anos de idade - sobre qual seria a maneira legítima de beijar a namorada na matinê do domingo. Aquele que Giacomo Casanova chamava, cheio de chauvinismo, de "estilo italiano" - ou beijo de língua - foi unanimemente descartado, como pecado mortal.

A Lima de então - final dos anos quarenta - ainda era uma cidade pequena, segura, calma e mentirosa. Vivíamos em compartimentos estanques. Os ricos e bem de vida em Orrantia e San Isidro; a classe média alta em Miraflores e a média mesmo em Magdalena, San Miguel, Barranco; os pobres, em La Victoria, Lince, Bajo el Puente, El Porvenir. Nós, rapazes das classes privilegiadas, quase não víamos os pobres e nem sequer nos dávamos conta de sua existência: eles estavam ali, em seus bairros, lugares perigosos e distantes onde, ao que tudo indicava, havia crimes. Um rapaz do meu meio, caso nunca saísse de Lima, podia passar a vida inteira com a ilusão de viver em um país de língua hispânica, com brancos e mestiços, ignorando totalmente os milhões de índios - um terço da população - que falam o quéchua e têm modos de vida completamente diferentes.

Tive a sorte de romper um pouco essa barreira. Hoje isso me parece uma sorte. Mas, na ocasião - 1950 -, foi um verdadeiro drama. Meu pai, que tinha descoberto que eu fazia poemas, temia pelo meu futuro - um poeta é um ser condenado a morrer de fome - e pela minha "masculinidade" (a crença de que os poetas são todos meio afeminados está ainda bastante espalhada em certo setor) e, como ação preventiva, houve por bem considerar que o antídoto ideal seria o Colégio Militar Leoncio Prado. Fiquei dois anos nesse internato. O Leoncio Prado era um microcosmo da sociedade peruana. Entravam ali rapazes de classe alta, mandados pelos pais como para um reformatório, rapazes de classe média que aspiravam à carreira militar, e também jovens dos setores humildes, pois o colégio tinha um sistema de bolsas que abria suas portas aos filhos das famílias mais pobres. Era uma das poucas instituições do Peru em que conviviam ricos, pobres e intermediários; brancos, cholos, índios, negros e chinos;* limenhos e interioranos. A clausura e a disciplina militar foram insuportáveis para mim, assim como o clima de brutalidade e de disputas com base na força. Mas acredito que naqueles dois anos aprendi a conhecer a sociedade peruana, seus contrastes, tensões, preconceitos, abusos e ressentimentos que um rapaz miraflorense não chegava nem a imaginar que existissem. Sou grato ao Leoncio Prado, também, por uma outra coisa: ele me proporcionou a experiência que foi a matéria-prima do meu primeiro romance. A cidade e os cachorros reconstitui, obviamente com muita invenção misturada, a vida daquele microcosmo peruano. O livro teve uma acolhida ruidosa. Mil exemplares foram queimados de forma cerimonial no pátio do colégio e vários generais o atacaram com dureza. Um deles disse que o livro tinha sido escrito por uma "mente degenerada"; outro, mais criativo, que se tratava, sem nenhuma dúvida, de um romance financiado pelo Equador para desmoralizar o exército peruano. O livro foi bem-sucedido, mas sempre fiquei em dúvida se isso aconteceu por mérito próprio ou devido ao escândalo que causou.

Nos últimos vinte anos, milhões de emigrantes da serra vieram se instalar em Lima, em subúrbios - chamados eufemisticamente de jovens vilarejos - que cercam os bairros antigos. Diferentemente de nós, os rapazes de classe média de hoje em Lima descobrem a realidade do país apenas abrindo as janelas de suas casas. Hoje os pobres estão por toda parte, como vendedores ambulantes, vagabundos, mendigos, assaltantes. Com seus cinco e meio ou seis milhões de habitantes e seus problemas gigantescos - o lixo, o transporte deficiente, a falta de moradias, a delinquência -, Lima perdeu muitos de seus encantos, como o bairro colonial e suas varandas com gelosias, sua tranquilidade, seus ruidosos e exaustivos carnavais. Mas hoje ela é de fato a capital do Peru, pois todas as pessoas e todos os problemas do país estão ali representados.

Dizem que amor e ódio se confundem, e acho que isso deve ser verdade, pois eu, que passei a vida praguejando contra Lima, emociono-me com muitas coisas dessa cidade. Por exemplo, sua neblina, esse véu que a encobre de maio a novembro e que impressionou tanto a Melville quando esteve por aqui (em "Moby Dick", ele chama Lima de "a cidade mais triste e estranha que se pode imaginar", porque "é tomada por um véu branco", que lhe "acrescenta o horror da angústia"). Gosto da sua garoa, a chuvinha invisível que sentimos como pequeninas patas de aranha no rosto e que faz com que tudo esteja sempre úmido e com que nós, vizinhos da cidade, nos sintamos, no inverno, um pouco batráquios. Gosto de suas praias de águas frias e ondas grandes, ideais para o surfe. E gosto de seu velho estádio, onde vou assistir a jogos de futebol torcendo pelo Universitario de Deportes. Mas sei que isso tudo são apenas fragilidades muito pessoais e que as coisas mais belas do meu país não estão ali e sim no interior, em seus desertos, ou nos Andes, ou, ainda, na floresta.

 
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