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02/07/2009 - 10h55

Leia trecho de "O que os Chineses Não Comem", da jornalista Xinran

da Folha Online

A Flip (Festa Literária Internacional de Paraty ) recebe nesta quinta-feira (2), às 17h, a mesa China no Divã. Participam do evento os chineses Ma Jian e Xinran Xue, e Angel Gurría-Quintana será o responsável pela mediação do debate. Os autores vão discutir diversos aspectos da nação que deve liderar a economia neste século.

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Livro traça uma retrato vivo e atual de uma China pouco conhecida
Livro traça uma retrato vivo e atual de uma China pouco conhecida

Leia entrevista de Xinran concedida à Folha Online

Nascida em Beijing em 1958, a jornalista e escritora Xinran criou, após a abertura política da década de 1980 em seu país, um programa de rádio que, durante oito anos, se tornou uma via de expressão das chinesas vítimas de violência.

Mudou-se para Londres, onde lançou o livro "As Boas Mulheres da China" (2002). Integrou a equipe do "The Guardian" até 2008 e publicou suas colunas em "O que os Chineses Não Comem". Também escreveu "Enterro Celestial" (2005) e "Testemunhas da China" (2009).

A trajetória de "O que os Chineses Não Comem" começa em 1989, ano em que a autora se tornou apresentadora de rádio. Quase todos os aspectos da vida chinesa são abordados nesta coletânea de crônicas para o "The Guardian". Dos cumprimentos cotidianos até as diferentes maneiras de usar meias, passando pelo sexo, pelas mudanças contemporâneas e pelas festas que definem a cultura do país.

Ao final, o leitor tem acesso a um retrato vivo e atual do que continua a ser --para os ocidentais, e também para os próprios chineses-- um dos países mais desconhecidos do planeta.

Leia abaixo um trecho de "O que os Chineses Não Comem".

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

*

Meses atrás, tomei café e bati papo com uma amiga, que comentou que um amigo seu andava infeliz pelo fato de a mulher estar grávida de uma menina. Isto significava que a primeira semente de sua família não tinha sido bem plantada. Ao escutar isso, mal pude acreditar em meus ouvidos: "Ele é inglês? Um ocidental moderno e instruído?". "Inteiramente", ela respondeu. A surpresa me fez pensar: então, idolatrar os homens e degradar as mulheres não era uma característica chinesa, ou um problema de países em desenvolvimento. O tempo, a civilização e a modernidade trouxeram progresso para o mundo, mas não garantiram educação e conscientização a todos no século XXI.

No lançamento do meu livro, uma repórter de uma revista feminina trouxe-me um artigo de jornal sobre o desequilíbrio dos sexos entre os jovens na China: ela esperava que eu escrevesse sobre a minha visão pessoal do assunto. Não costumo ler jornais quando estou cercada de buquês de flores e de vinhos finos: primeiro, o vinho pode fazer as palavras do jornal "ficarem duplas"; depois, os bilhetes de congratulações nos buquês são capazes de transformar uma pessoa qualquer num expert universal. Mas todas as minhas determinações evaporaram quando li a manchete: "Homens chineses não conseguem encontrar esposas". Seria verdade? Nós chineses estaríamos realmente ameaçados de um rompimento da descendência?

Quando cheguei em casa, com as luzes ainda brilhando em milhares de lares ingleses, todos os meus amigos chineses já estavam dormindo, sonhando os sonhos de uma noite de verão em Nanjing. Mal pude conter meu coração agitado e meus dedos impacientes. Às duas da madrugada, liguei para uma amiga que trabalha em uma importante repartição governamental. Seu jeito ao telefone foi direto.

"Xinran, você ainda é tão incorrigivelmente ingênua, tão facilmente dominada pela propaganda da mídia ocidental... É verdade que para muitos homens formados, especialmente nas regiões mais desenvolvidas, a falta de poder ou de dinheiro significa que é difícil encontrar uma esposa. Há muito poucas moças nas cidades, e a qualidade das garotas do campo é baixa demais. Mas não há como contornar isso. Nós controlamos a explosão populacional, porém não temos meios de impedir as pessoas de tentar escolher o sexo de seu filho, a fim de 'manter acesa a chama da família'.Nas grandes cidades, a proporção de vinte meninos para cada menina é muito, muito maior do que os seis para um com que originalmente contávamos. É claro que o governo tem uma política firme contra isso. Nós tínhamos uma antes e temos uma agora. Mas quantas pessoas realmente tomam conhecimento? Quem pode resistir aos valores tradicionais, e a pais que acreditam que a propriedade é 'um encorajamento e uma recompensa para filhos e netos'? Você sabe, Xinran, jornalistas descobrindo problemas e governos resolvendo-os são duas coisas bem diferentes.

Enviamos muitos funcionários para explicar ao povo no nível mais baixo que não existe distinção entre os sexos nas nossas políticas econômicas e fiscais, e que, se tivermos um desequilíbrio na população, 'a chama se apagará' para todos. Bandos de camponeses chegaram a arrasar as casas de famílias que tinham seis filhas e ainda queriam ter um filho. Mas se você olhar para os banquetes que são oferecidos com o nascimento de um menino, e as perdas pessoais e os divórcios que resultam do nascimento de uma menina, ficará claro que, quanto ao comportamento humano, 'é mais fácil se livrar das folhas que das raízes'.O que se há de fazer? Relaxar a política de controle populacional? Xinran, será que a assim chamada civilização ocidental a transformou em uma idiota? Você sabe que nós sempre permitimos um nascimento extra no campo, às vezes até três. Nas grandes cidades, porém, só pode haver a mais rigorosa implementação da política de um único filho, e é por isso que os rapazes não conseguem encontrar esposas. Mas poderiam as poucas cidades desenvolvidas, com seu desenvolvimento econômico limitado, suportar tantos camponeses empobrecidos? Se a China ficar como a Somália ou o Sudão depois de relaxarmos a política de controle populacional, o que vamos fazer? As gerações futuras não amaldiçoarão nosso nome? É melhor ter jovens com problemas para encontrar uma esposa do que deixar futuras gerações de mulheres sem nada com que alimentar ou vestir suas crianças. Não se aborreça sem motivo, Xinran. Nós, chineses, não ficaremos sem um futuro, as pessoas aprendem melhor com as próprias dificuldades. Sim, sim, eu concordo com você, o preço dessa lição é alto demais, e doloroso demais... O seu filho PanPan está bem? Não se preocupe, você poderá ter a minha filha como nora, nós temos a 'menina de ouro' que todo mundo quer. E como vai indo o seu livro? Os estrangeiros acreditam nele? Para ser franca, as mulheres chinesas de poucas gerações antes da nossa tiveram uma vida tão dura que nem seus próprios filhos ousam acreditar. Bem, você tem que dormir. E eu preciso ir a uma reunião. Obrigada."

Quando desliguei o telefone, subitamente senti uma enorme distância entre a China e o mundo. A China vinha avançando rumo ao presente a passos tão largos que não teve tempo de avaliar o panorama histórico, ou de pensar em seus companheiros de viagem através da história, nem sequer de considerar se não deveríamos dar um descanso aos nossos corpos cansados da batalha, depois de nos exaurir com conflitos internos e externos nos últimos cem anos.

Quando peguei minha caneta e escrevi o que tinha aprendido, descobri que não havia ali nenhuma das minhas próprias visões, mas que tudo o que eu queria dizer já estava lá. Pensei naquele cavalheiro inglês que queria ter um filho: talvez ele acredite na visão tradicional chinesa de que "existem três tipos de comportamento não filial, dos quais o pior é não ter herdeiros". No entanto, ele sem dúvida precisava da filha de alguém para lhe dar um filho.

*

"O que os Chineses Não Comem"
Autor: Xinran
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 192
Quanto: R$ 37,50
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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