Livraria da Folha

 
08/03/2010 - 15h33

"A História dos Seios" investiga de forma poética o câncer de mama e a feminilidade

da Livraria da Folha

Divulgação
Obra traz passagens baseadas na experiência médica da autora
Obra traz passagens baseadas na experiência médica da autora

Em "A História dos Seios", a médica e poeta Rosália Milsztajn utiliza a sua experiência na medicina tanto para dar voz tanto às mulheres que sofrem com o câncer de mama como para investigar as metáforas e imagens desta parte da anatomia que é sinônimo de identidade feminina.

A obra traz mais de 40 textos curtos, de cerca de uma página, com nomes sugestivos como "leite", "cinto de castidade" e "decotes".

Os textos são como momentos flagrados do cotidiano feminino, revelando as incertezas, desejos e a batalha contra a doença; sem autopiedade nem drama.

Leia abaixo alguns textos de "A História dos Seios".

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sinfonia noturna

COMO IA DIZENDO: eu não tinha peito. Era quase uma tábua, como chamavam antigamente. Vivia sonhando em ter os peitos de Marilyn, da Mansfield, quer dizer, da Mama.

Minha mãe tinha mamas enormes. Mamas que, se já não davam mais leite, eram como brinquedos para os netos que deitavam à sua volta na cama, todos eles, isto é, oito netos e netas que se esbaldavam em acariciá-los e achá-los muito engraçados.

Mas, como num milagre, no dia seguinte ao parto de meu primeiro filho acordei "Marilyn" e fiquei feliz. Parecia ter havido alguma mágica em meu corpo. Teria acontecido uma dança hormonal, uma sinfonia noturna. Estavam bem grandes apesar de doloridos. E ofertei-os ao primeiro bebezinho que chegou ao meu leito de hospital.

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silicone

COMO DUAS BOLAS DE ARGILA, eis que estavam socados sob a minha pele - meus seios de silicone. Meio esquisito, mas logo vou me acostumar, disse o médico. Com tudo a gente se acostuma. Mas pensando bem foi e está sendo tudo muito bom. Na outra mama, considerada sadia, o laudo da biópsia já tinha detectado umas células transviadas que poderiam se tornar coisa ruim. E imaginar todas as horríveis terapias a que se submetem tantas mulheres hoje em dia no tratamento do câncer de mama. Radioterapia, quimioterapia e suas terríveis consequências: dor, perda de cabelos, queimaduras, etc. etc. etc. Pior, só a morte.

Essas duas bolas de argila, vou esculpi-las com o tempo sob minha pele, acariciando-as, moldando-as, tornando-as minhas e agradecendo a oportunidade de tê-las ainda a tempo.

Viva a ciência e graças a Deus viva eu.

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tesão

ESTOURARAM TODOS OS PONTOS. A prótese saiu e teve que ser reoperada. "Mas como?" - perguntava o médico. Com um certo pudor que escondia uma alegria, isto é, dupla alegria, ela disse que havia transado com o marido e não sabia como isso havia acontecido.

Dupla alegria porque transar é uma alegria e com o marido, que vem a compreender a situação de sua mulher - mastectomizada - sem perder o tesão por ela. Que lindo!

Mas ainda se encontram esses raros casos. O mais comum é a mulher ir sendo afastada, vista como meio fêmea, ou castrada, e ao longo do tempo ir se tornando assexuada aos olhos do mundo masculino e, como consequência, por ela mesma. Viva esse marido! Viva!

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tratamento

UM FICOU MAIOR QUE O OUTRO. Mais no centro do que o outro. Um pouco mais alto do que o outro. Mas ninguém tem os dois seios iguais, falei para mim mesma na tentativa de apaziguar um pouco a decepção de não vir a ter seios perfeitos.

Eu sei que foi uma mastectomia com a reconstrução e não simplesmente uma cirurgia plástica de mamas, que é muito diferente. Uma é tratamento e cura e a outra só estética e embelezamento.

Mas por que não consigo ficar totalmente feliz porque fiz com grande sucesso uma cirurgia diminuidora de risco? Talvez porque seja difícil pensar no que fiz para prevenir o que poderia ter, isto é: um câncer de mama. Talvez seja melhor achar defeito na mama - que sinceramente não tem tanto defeito assim - ficou um pouquinho maior e até bem em pé - do que pensar em todas as outras fantasmagorias. Ao contrário do cirurgião, que, ao salvar a paciente do alto risco, tudo o que vier é detalhe. Acho que o médico tem toda razão. Mesmo porque estou achando que ficaram ótimas! Não tem nada mais bonito do que viver.

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pessoas

AS PESSOAS DITAS SADIAS MUITO ME ASSUSTAM. Insistem em achar que tenho câncer - muito embora não o tenha -, já que fiz o tratamento preventivo, a adenectomia profilática, que se constitui pela retirada das mamas, sem retirar a pele, o mamilo, a auréola. Mesmo tendo dito que não precisei nem fazer quimioterapia e radioterapia e que por ser a cirurgia preventiva pude colocar as próteses de silicone no mesmo ato cirúrgico em que retirei as mamas. Olham-me de um jeito como se eu já estivesse condenada, embora tenha me livrado de estar. Os programas de televisão, rádio, jornais, revistas e tudo que é relativo ao assunto - as pessoas sadias -, me convocam para assisti-los já que imaginam que não estou curada. Elas acreditam que estão completamente livres e não sofrem e não sofrerão nenhuma ameaça na medida em que colocam toda a ameaça em cima de mim. Espero que as pessoas que estejam lendo essas histórias não sejam pessoas sadias. Não se assustem, pessoas sadias - existem muitos meios de continuar sadia sem colocar a doença em alguém.

"A História dos Seios"
Autores: Rosália Milsztajn
Editora: 7Letras
Páginas: 64
Quanto: R$ 28,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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