Livraria da Folha

 
17/03/2010 - 20h34

Milton Leite conta em livro como o Brasil conquistou a Copa de 1958; leia trecho

JULIANA FARANO
colaboração para a Livraria da Folha

Em 1950, a seleção viu o Uruguai se tornar campeão mundial no Maracanã lotado. Quatro anos depois, o Brasil deixou a competição nas quartas de final. De acordo com o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues, estava instaurado na população o "complexo de vira-latas". O termo servia para descrever o sentimento do país, que andava cabisbaixo por conta da falta de glórias dentro das quatro linhas.

Divulgação
Jornalista fala sobre as grandes equipes que defenderam o Brasil
Jornalista fala sobre as grandes equipes que defenderam o Brasil

Na Copa de 1958, porém, tudo mudou. Enquanto os dirigentes entraram com planejamento e organização, craques como Pelé, Garrincha, Didi, Zagallo e Djalma Santos emprestaram o talento nato com a bola nos pés e, juntos, levaram o Brasil ao topo de mundo, conquistando pela primeira vez a Taça Jules Rimet.

Não é a toa que a equipe está relacionada no livro de Milton Leite, "As Melhores Seleções Brasileiras de Todos os Tempos" (Editora Contexto, 2010).

Na publicação, o jornalista escala alguns dos times que brilharam nas competições mundiais e relata em detalhes as suas trajetórias. Além da seleção de 1958, estão na obra as campeãs das Copas de 1962, 1970, 1994 e 2002, além do marcante grupo de 1982.

No trecho abaixo, Leite conta como o Brasil conquistou sua primeira Copa do Mundo. Ele dá detalhes da fase decisiva da competição, fala da organização do time, do posicionamento tático dos jogadores e dos bastidores da conquista.

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Garrincha perde lugar

Brasil, União Soviética, Inglaterra e Áustria disputariam duas vagas para a segunda fase. O primeiro confronto foi com a Áustria, em Uddevalla. Nilton Santos, o jogador mais experiente do grupo, com 33 anos, era o titular da lateral-esquerda nos anos anteriores, mas havia uma pressão paulista pró-Oreco, que jogava no Corinthians. De acordo com Ruy Castro, Nilton estava definido como titular desde os jogos na Itália, mas Péris Ribeiro, jornalista e autor do livro Didi - o gênio da folha-seca, garante que Oreco é quem começaria o primeiro jogo. Mas, na véspera, o lateral do time paulista teve um afundamento de malar. Com Pelé ainda contundido, a dúvida a ser dirimida por Feola era Joel ou Garrincha na ponta-direita e aí a definição contou com a participação do observador Ernesto Santos, conforme levantamento de Ruy Castro.

Ele expôs à comissão técnica que a Áustria jogava com quatro atletas no meio-campo e sugeria que o Brasil reforçasse o setor para equilibrar as ações. Para tanto, seria necessário que o ponta-direita auxiliasse na marcação, como Zagallo fazia pelo lado esquerdo. Vicente Feola disse que poderiam pedir a Garrincha para executar a tarefa. Paulo Amaral, que conhecia bem Garrincha do Botafogo, foi definitivo ao argumentar que ele não costumava cumprir função tática nenhuma, que não seguiria o pedido de marcar no meio. Joel, ótimo ponta-direita e mais disciplinado, foi o escolhido. O Brasil jogou com Gilmar, De Sordi, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Dino Sani, Didi e Zagallo; Joel, Dida e Mazzola. Como se verá, a equipe mudou muito até a final.

O jogo foi duro, principalmente no primeiro tempo, com os jogadores brasileiros tensos. Gilmar chegou a salvar algumas oportunidades criadas pela Áustria. Só aos 37 minutos o Brasil conseguiu marcar o primeiro gol, com Mazzola. No início do segundo tempo, a Áustria deu sinais de que continuaria pressionando, mas uma arrancada de Nilton Santos, aos cinco minutos, garantiu o segundo gol. Mazzola, mais uma vez, aos 35 do segundo tempo, sacramentou a vitória. A seleção viajou na sequência para Gotemburgo, para as duas outras partidas da fase inicial.

No segundo compromisso, o adversário foi a Inglaterra e o Brasil teve a primeira das muitas modificações durante a competição: Dida, sentindo dores no pé, não conseguia sequer chutar a bola e foi substituído por Vavá. Feola pretendia escalar uma equipe mais ofensiva do que na estreia, por isso Garrincha deveria ocupar o lugar de Joel. Outra vez, Ernesto Santos interferiu. Desta vez ele alertou para o lateral esquerdo da Inglaterra, Slater, jogador muito violento. Segundo ele, um ponta que fosse enfrentá-lo, fatalmente seria atingido, poderia se contundir e ficar fora do resto da Copa. Conclusão: seria mais fácil para Joel jogar procurando o meio, evitando os confrontos diretos com Slater - e mesmo assim, no segundo tempo, numa tentativa de drible, o brasileiro recebeu uma pancada e saiu de campo com muitas dores.

Com a Inglaterra fechada, marcando muito, e o Brasil cauteloso, a partida terminou empatada em 0 a 0 - foi o primeiro jogo sem gols na história das Copas do Mundo. Com o resultado, a seleção brasileira tinha uma decisão na última partida da primeira fase, contra a União Soviética, novamente em Gotemburgo. Os soviéticos jogavam o que na Europa se costumou chamar de "futebol científico", com excepcional preparo físico. Feola mudou a seleção em mais três posições: Pelé, recuperado da contusão, entrou no lugar de Dida; Zito ficou com a vaga de Dino Sani, que sofreu uma distensão muscular; e Garrincha, finalmente, foi escalado no lugar de Joel. "O Pelé ainda não era conhecido. Eu mesmo não sabia quem era ele, pois só tinha jogado uma vez no Maracanã antes de iniciarmos os treinos para a Copa. Mérito do Feola que o conhecia de São Paulo e resolveu apostar naquele garoto prodígio", diz Zagallo.

Sobre Joel, Zagallo lembra que dividia o quarto com ele na concentração e que os dois jogavam juntos no Flamengo. "Ele me disse que estava sentindo dores no joelho e eu argumentei que se ele relatasse para a comissão técnica, o Garrincha ia entrar e não sair mais. Mas ele preferiu contar e perdeu o lugar de titular."Apesar das dores, não foram elas que tiraram Joel do time, porque a vontade de Vicente Feola era iniciar a Copa do Mundo com o jogador do Botafogo, pelo menos de acordo com o relato de Ruy Castro.

Mas a escalação só foi definida num treino secreto, na véspera do jogo. Os jornalistas brasileiros e estrangeiros foram avisados de que o coletivo final seria no período da tarde, mas no meio da manhã os jogadores foram chamados, colocados no ônibus e seguiram sem saber para onde. Foi ali que houve a confirmação de Pelé e Garrincha e onde também se traçou a estratégia de jogo, que previa sufocar os soviéticos no começo, tentando fazer logo um gol.

Três minutos alucinantes

E assim foi: já no primeiro lance da partida, Garrincha driblou vários adversários, chutou forte e a bola pegou na trave, aos 40 segundos. Os soviéticos recolocaram a bola em jogo, o Brasil retomou, Garrincha fez mais uma jogada, lançou Pelé que arriscou o chute: bola no travessão. Os brasileiros não pararam de pressionar e Vavá abriu o placar, aos três minutos. O jornalista Gabriel Hannot, do diário esportivo francês L'Equipe, classificou aquele início como "os maiores três minutos da história do futebol". Só no segundo tempo Vavá marcou o segundo gol da vitória. Pelé e Garrincha estrearam em Copas do Mundo, começaram a encantar o mundo e a virar mitos - com os dois juntos em campo, a seleção brasileira nunca foi derrotada. O Brasil avançou para as quartas de final, ainda em Gotemburgo, para enfrentar o País de Gales.

O primeiro confronto eliminatório foi um dos mais complicados daquele Mundial, porque o País de Gales armou uma retranca fortíssima. Vavá não pôde jogar e Mazzola voltou ao time titular. O Brasil só conseguiu vencer com um gol de Pelé, aos 28 minutos do segundo tempo. Garrincha passou pelo seu marcador, tocou para Didi, que lançou Pelé: de costas para o zagueiro, deu um chapéu, ajeitou com o pé esquerdo e mandou o chute com o direito, um golaço, o primeiro dele em Copas. O Brasil avançou para a semifinal e transferiu-se para a capital Estocolmo. "Marcar aquele gol foi uma alegria muito grande, pois a seleção se classificou e eu ganhei a posição definitivamente", recorda Pelé.

A França foi o adversário da semifinal. Diz Djalma Santos: "Quando ganhamos da França tivemos certeza de que não tinha mais como perder aquela competição". Mas havia uma preocupação: os franceses eram donos do melhor ataque da Copa (15 gols em quatro jogos) e do artilheiro, Fontaine (oito gols). A defesa brasileira ainda não tinha sido vazada. Como reagiriam os jogadores brasileiros se saíssem perdendo? O "complexo de vira-lata", expressão criada pelo jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, voltaria à tona? Era corrente entre os torcedores brasileiros o sentimento de que o time se apequenava nos momentos de dificuldades nas Copas do Mundo.

A comissão técnica chegou à conclusão de que era importante começar pressionando e marcar primeiro, como havia acontecido contra a União Soviética. E assim foi: com 30 segundos de jogo, Didi arriscou um chute de longe e quase marcou. Logo depois, o Brasil tomou a bola, Garrincha iniciou a jogada driblando adversários, deu para Didi, que lançou Vavá: 1 a 0 Brasil, com apenas dois minutos. Os franceses reagiram rapidamente e Fontaine empatou aos oito minutos. E como temia a comissão técnica, os brasileiros ficaram abatidos com o gol, a França cresceu, dominou a partida e teve chances para virar, mas Gilmar conseguiu evitar. Só no final do primeiro tempo, quando o Brasil se reequilibrou, Didi conseguiu colocar o time na frente mais uma vez. No segundo tempo, Pelé liquidou o jogo, marcando três gols, a seleção venceu por 5 a 2 e ganhou a vaga na decisão contra a Suécia, dona da casa.

Djalma Santos conta que naquele tempo não se sabia com detalhes como o adversário jogava, porque não havia filmes e vídeos como nas preleções de hoje. As informações chegavam com o espião Ernesto Santos, que ia assistir aos jogos dos adversários. "E os homens?", perguntavam. "Umas feras, terríveis", respondia Ernesto.

- Ele falava sempre isso, porque acreditava que se dissesse que os caras eram "galinhas mortas", nós entraríamos relaxados - lembra Djalma. Na véspera da final, ao saber que ia jogar, fui perguntar pelo ponta-esquerda deles, Skoglund. "Uma fera, muito forte, joga na Itália", ele respondeu. Eu estava tranquilo, vinha treinando bem.

Djalma recebeu a notícia de que seria titular na final da Copa do Mundo dois dias antes do jogo, quando foi chamado por Vicente Feola, juntamente com De Sordi. O titular até então teria dito a ele que não tinha condição de jogar. "A conversa entre nós foi importante porque ele atuou na Copa toda e eu ia entrar no jogo mais importante, o da fotografia", diz Djalma. Há outra versão: De Sordi teria demonstrado muito nervosismo com a aproximação da decisão e sua substituição teria sido recomendada pelo médico Hilton Gosling.

Didi acalma o time

Antes da Suécia, os brasileiros tiveram que vencer a superstição. Por sorteio, a Suécia ganhou o direito de utilizar a camisa amarela. Os jogadores ficaram apreensivos: temiam que a sorte abandonasse o time com o uniforme. A comissão técnica cogitou utilizar camisas brancas, mas elas foram descartadas depois da derrota em casa para o Uruguai, na final de 1950, justamente porque ficaram amaldiçoadas. A escolha recaiu sobre o azul e camisas foram compradas no comércio de Estocolmo. Para fugir da superstição, conta-se, em história que ficou célebre: Paulo Machado de Carvalho disse ao grupo que aquele era um sinal de que o título estava mais próximo, afinal aquele azul era da mesma cor do manto de Nossa Senhora. Bastou para o otimismo voltar.

A preocupação que Vicente Feola e sua equipe haviam manifestado para os confrontos contra a União Soviética e França concretizou-se justamente na final. O início da equipe nacional contra a Suécia foi muito ruim, com erros de passes (será que a bola era passada para quem estava de camisa amarela por hábito?). O adversário se aproveitou, empurrado pela torcida, e abriu o placar com Liedholm, logo aos quatro minutos. Aí, outra cena inesquecível daquela conquista: Didi foi calmamente até o fundo do gol, pegou a bola e caminhou lentamente até o meio-campo. No caminho, pedia tranquilidade aos companheiros e garantia que virariam o placar. Mas, antes, um susto que poderia ter custado o título:

- Este lance eu jamais vou me esquecer. O Skoglund fez um cruzamento do lado esquerdo e o Gilmar foi para a bola. Ele faria a defesa, só que escorregou e a bola passou. Eu nem sei por que estava ali, mas acabei tirando a bola com a cabeça, quase em cima da linha do gol. Eles fariam 2 a 0 e ficaríamos numa situação muito delicada - relembra Zagallo.

O Brasil empatou logo depois, aos nove minutos, com Vavá, após jogada de Garrincha. Aos 32 minutos, outra vez dribles de Garrincha e conclusão de Vavá, virando o placar para a seleção brasileira. Aos dez minutos do segundo tempo, Pelé ampliou para 3 a 1 e, conforme a partida ia se resolvendo, Zagallo tinha pensamentos sem nenhuma relação com aquela final de Copa do Mundo.

- Eu me lembrava do que tinham dito antes de eu viajar - recorda. Eu cresci na Tijuca [bairro do Rio de Janeiro], fui juvenil do América, conhecia o pessoal dali, era amigo de muitos sócios. Eu sempre tive muita sorte, em tudo. E quando eu fui convocado, eles diziam: "Zagallo foi para a Copa, o Brasil será campeão". Imagine: final de Copa do Mundo, o jogo acontecendo e eu pensando nisso...

O próprio Zagallo marcou o quarto gol ("faltava deixar o meu selo"), os suecos ainda diminuíram e, no último minuto, Pelé fechou a goleada, 5 a 2. Jogadores e integrantes da comissão choravam, se abraçavam. Ao receber a taça, Bellini estava cercado por fotógrafos do mundo todo. Os brasileiros, um pouco atrás, não conseguiam visualizar o troféu e pediram para que ele fosse erguido um pouco mais. O capitão da primeira seleção brasileira campeã do mundo levantou a Jules Rimet acima da cabeça, para as fotos. O gesto eternizou-se e, a partir dali, tem sido repetido sempre que alguém recebe um troféu.

O menino Pelé era o mais emocionado, chorava amparado pelo goleiro Gilmar: "Lembro como se fosse hoje a emoção que eu sentia", diz ele mais de 50 anos depois. "Era na minha família que eu pensava. Ficava imaginando se o meu pai Dondinho já estava sabendo da nossa vitória." Djalma Santos, o campeão de uma partida só, acabou sendo eleito o melhor lateral-direito do Mundial. "Os caras eram meus amigos", brinca.

Depois da festa, em Estocolmo, a seleção brasileira só iniciou a viagem para casa dois dias após a final. "Foi mais fácil ganhar a Copa do Mundo do que voltar para casa, os aviões não tinham a autonomia que têm hoje", não esquece Djalma. Foram escalas em Londres e Paris, nas quais os atletas desceram do avião e participaram de coquetéis e homenagens. Na sequência, Lisboa, com direito a desfile em carro aberto e festa com a torcida nos estádios do Benfica e do Sporting. O voo para o Brasil fez a primeira parada em Recife, onde o desfile pela cidade ocorreu sob muita chuva. Haveria ainda uma parada em Salvador, mas ela acabou abortada e o avião da Panair seguiu direto para o Rio de Janeiro.

"Eu jamais imaginei uma recepção como aquela", lembra Zagallo. "Claro que sabia que seríamos bem recebidos, mas não que haveria gente por todo percurso, do aeroporto do Galeão até o Palácio do Catete, sempre com uma multidão esperando a nossa passagem". O grupo teve um encontro com familiares na sede da revista O Cruzeiro e recepção oferecida pelo presidente da República Juscelino Kubitschek.

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"As Melhores Seleções Brasileiras de Todos os Tempos"
Autor: Milton Leite
Editora: Contexto
Páginas: 224
Quanto: R$ 33,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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