São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Feliz ano velho para o país do futuro

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gostaria de começar 1994 apontando fatos ou propondo mudanças que pudessem indicar caminhos novos para a economia brasileira. Infelizmente, as evidências são no sentido da permanência e agravamento das características estruturais mais perversas de uma sociedade profundamente desigual, que apenas toma consciência das suas "chagas" mais profundas, em arroubos de emoção periódica, para logo esquecê-las.
Cheguei há 40 anos neste país, que era então o país do futuro. As questões que estavam sendo discutidas continuam sem solução. A escala dos velhos e novos problemas não fez senão aumentar.
Na década de 50, a massa de pobreza representava cerca de 25% da população. Hoje também, só que em números absolutos multiplicou-se por quatro. As mudanças ocorridas na composição desta pobreza só fizeram piorar o problema. Antes, o corte fundamental era a diferença rural-urbana. Os mais pobres estavam no campo, sobretudo no Nordeste. A fronteira agrícola estava em expansão: norte do Paraná, Goiás e Mato Grosso, Maranhão. A Amazônica ainda era um "Eldorado" a conquistar e a capital do Brasil não tinha mudado para Brasília.
Havia fundadas esperanças de que uma ocupação racional das terras da nova fronteira e uma reforma agrária poderiam alterar a situação atacando o mal pela raiz. Eram as propostas de reformas de base do início dos anos 60, que como se sabe foram abortadas pelo movimento de 64.
Hoje, a fronteira está "ocupada" até os limites da Amazônia. A "grande empresa capitalista" continua usando o latifúndio e relações de trabalho supostamente "pré-capitalistas" para avançar nos grandes negócios de gado, extração de madeira, agrobusiness e finalmente, como sempre, valorização patrimonial das terras.
Na franja do movimento do grande capital agrário (nacional e multinacional) continuam movendo-se milhões de párias, entre os "sem-terra" e os "bóias-frias" que agora têm apenas mais "liberdade" de ir e vir, num rotineiro "bye, bye Brasil". Mais da metade da pobreza contemporânea foi depositar-se nas grandes metrópoles, num movimento migratório espantoso que realizou em 40 anos uma mudança na demografia econômica que levou 80 anos para ocorrer nos EUA e mais de 200 nas antigas "civilizações camponesas" européias.
Esta pobreza metropolitana está longe de ser arcaica. É moderníssima. Usou as brechas abertas por um "mercado" de trabalho urbano em expansão rápida, sobretudo nas décadas de 60 e 70, para encaixar-se nos interstícios da economia urbana. O setor de serviços cresceu desmesuradamente e é hoje onde mais se concentram a renda, a riqueza e a pobreza.
A reprodução das desigualdades avançou no setor urbano para níveis inimagináveis e alcançou-se uma distribuição das "rendas do trabalho" que é a pior do mundo. Não por falta de novos "empregos", mas porque a estrutura ocupacional, formal e "informal", e o correspondente leque de rendimentos sofreram distorções profundas.
Apesar de permitir a ascenção individual ou familiar de muitos grupos sociais, a famosa mobilidade vertical, associada a uma violenta mobilidade horizontal, rebaixou a base de referência da "pirâmide salarial": o valor do salário mínimo. Este, que serve de piso para a estrutura dos assalariados formais (com carteira assinada) e dos aposentados, serve também de farol para a remuneração dos que apenas lutam pela sobrevivência na franja do capitalismo urbano.
Se o "mercado" vai bem, há crescimento e melhoram as rendas das "classes médias" (distribuídas nos 20% superiores da pirâmide de rendas), aumentam o emprego e as rendas derivadas, o salário de base cresce e diminui o número de pessoas ocupadas com remuneração abaixo do mínimo. Se há estagnação e superinflação, as perspectivas de emprego (formal e informal) diminuem, a renda da classe média cai, junto com o número de "agregados" que ela é capaz de sustentar.
O número de pessoas com renda nominal abaixo do mínimo aumentou e o próprio salário mínimo é incapaz de sustentar-se no nível histórico, quer da sua origem (1942), quer dos seus valores máximos (1950-59). Assim, não apenas o valor dos salários cai brutalmente na distribuição funcional da renda (repartição entre assalariados e rendas de capital), mas a "pirâmide salarial", ou seja, a distribuição interna aos rendimentos do trabalho, torna-se monstruosamente desigual.
Esta desigualdade se reproduz em todos os setores da vida nacional, modernos ou atrasados, legais ou ilegais, formais ou informais. A diferença é de cerca de 200 vezes (hoje: US$ 50 para o piso e cerca de US$ 10.000 para a cúpula "assalariada").
Esta diferença foi primeiro detectada por Edmar Bacha, numa pesquisa que fez em meados da década de 70, embora já tivesse sido sugerida por mim e José Serra num ensaio que escrevemos a quatro mãos em Santiago do Chile: "Más allá del Estancamiento" (1969-70). Fazíamos todos (os progressistas de então) a crítica da "teoria do bolo", que pretendia justificar o "perverso milagre brasileiro" na base do slogan: "É preciso crescer para depois distribuir".
Hoje o slogan mudou, mesmo para os "progressistas": é preciso estabilizar para depois crescer, para depois distribuir. Isto é: com a superinflação pioraram as condições reais da população e cresceram os obstáculos (objetivos e subjetivos) para melhorar a distribuição de renda.
Não importa se o salário mínimo legal foi fixado em US$ 100, o seu valor real, quando se fizer o 13.º ajuste impossível, não pode superar a "média" de US$ 60 (metade do que era no final dos anos 70 e um quarto do valor alcançado na década de 50!!!).
A atual distribuição salarial, na qual um "bagrinho" do serviço público ganha 200 vezes menos que um juiz do Supremo Tribunal (bons tempos em que a escala máxima era a "letra O"), só tem uma explicação plausível, que está na generalização dos "direitos" dos poderosos e na independência dos "poderes".
Vale dizer, é o poder –e não a eficiência ou "a lógica da acumulação de capital"– que guia a distribuição dos rendimentos. Esta lógica do "poder" e do "direito", estabelecidos como uma tática de "ocupação e demarcação do território", vale para qualquer estrutura social neste país.
Os "podres poderes" são legitimados tanto no mercado informal de produtos ilegais (por exemplo, a droga), quanto nos mercados formais de trabalho, onde os contratos tem níveis e regras de indexação arbitrárias, com vários períodos e formas de correção monetária.
No sistema financeiro, um jovem universitário treinado em algum curso de pós-graduação, na boa técnica norte-americana, mesmo sem experiência, pode ingressar no mercado com um salário de US$ 10.000, enquanto o "boy" que o serve no escritório ou a faxineira de turno ganham salário mínimo e rodam mais do que pião nas "empreas" prestadoras de serviços de apoio (fenômeno que ganhou status com o nome pomposo de terceirização).
Enquanto isto, velhos e novos liberais cosmopolitas dançam a ronda da modernidade, entre Rio, São Paulo e Brasília, como se estivessem todos em Berlim, Londres, Paris e Nova York, onde, aliás, os "novos tempos" também já estão chegando. É lá, nas grandes metrópoles cosmopolitas, que devem saudar o "ano novo" que se aproxima, já que, ao contrário do imaginado por um velho "profeta de barbas" do século passado, é olhando para nós (ao sul do Equador) que devem ver a imagem futura de si mesmos. Cabe a eles decifrar a sua própria imagem no "espelho de Próspero" invertido. Talvez algum americano se suicide em Paris pensando no Brasil –país do futuro.
Aqui, como o futuro já chegou, podemos voltar à luta pela sobrevivência de cada um, até que as velhas "leis malthusianas" sejam aposentadas, supostamente lá pelo ano 2.030. Enquanto antigos esquemas de solidariedade revisitados não derem frutos maduros, podemos também continuar lutando, sobretudo os que ainda não desistiram, pelas bandeiras de 200 anos atrás, apenas agora com a "ordem" trocada: "Liberdade, Fraternidade e Igualdade!" Nada de "utopias realistas", busquemos forças no passado, para atravessar este futuro doloroso: feliz ano velho!

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