São Paulo, terça-feira, 4 de janeiro de 1994
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Fogo e água viram armas na guerra bósnia

PIERRE HAZAN
DO "LIBÉRATION", EM SARAJEVO

Quando a velha Iugoslávia existia, o nome era "bulevar Marechal Tito". Desde o início do cerco de Saravejo, a principal artéria da cidade se tornou a "alameda dos franco-atiradores".
A 200 ou 300 metros, sérvios com fuzis disparam contra seus alvos. Ignorando a loteria mortífera, um homem vasculha a terra. A árvore foi derrubada, mas as raízes continuam ali e é bom tentar recuperá-las para sobreviver: fazer uma fogueira, aquecer-se, ferver uma batata –com sorte, cozinhar o arroz distribuído por alguma organização humanitária.
Saravejo tem as veias cortadas por 20 meses de cerco. Como o homem na "alameda dos franco-atiradores", a cidade cava –para sobreviver ao inverno, a temperaturas que já baixaram dos -20ºC e às doenças, para encontrar madeira e conectar a tubulação de gás dos prédios atingidos por bombas, para restabelecer a eletricidade, quando por milagre há energia.
"Sarajevo é uma pequena bomba atômica", explica rindo o médico Bakir Nakas, diretor do hospital do Estado. E continua a rir ao mostrar a bala que, diz ele, "me era destinada". A bala está alojada num quadro pendurado em seu escritório, a poucos centímetros da cabeça do médico.
Os corredores do hospital estão gelados. Graças a aquecedores a gás improvisados, os quartos dos doentes são aquecidos: 10, 15 graus, em geral bem menos. Os médicos chegam a operar a -7ºC. "O problema não são os remédios, que recebemos com certa regularidade. Falta comida. Distribuímos 450 g de alimentos depois de uma operação –250 g para os pacientes e 150 g para o pessoal que trabalha. É insuficiente. Mas o mais grave é a falta de energia nos geradores para operar", diz Nakas.
Os médicos às vezes operam só com uma lanterna. Num canto, fichas de pacientes e documentos estão empilhados ao lado de um fogão. Queima-se a memória da cidade para ganhar um dia, semana, ou mês de vida.
Graças à ponte aérea, os 300 mil moradores conseguem se alimentar, embora cada um tenha perdido cerca de 12 kg desde o início da guerra, em abril de 1992. A água, controlada pelos sérvios, é escassa. Agua, madeira e eletricidade viraram armas, usadas para abater o moral dos civis –mesmo que isso implique provocar epidemias de hepatite, tuberculose ou tifo.
Em Genebra, os combatentes prometeram não atrapalhar a ajuda humanitária. Os líderes sérvios assinaram um acordo em novembro que previa a distribuição de 400 m3 de combustível para Sarajevo, 330 m3 para os encraves muçulmanos e 200 m3 para as regiões sérvias. Mais um papel que não vale nada.
"Os sérvios agora exigem que para cada litro que chega ao outro lado eles recebam o equivalente", disse Ron Remond, do Alto Comissariado da ONU para Refugiados. Por falta de combustível, só esporadicamente os caminhões de lixo fazem coletas –uma bênção para os ratos, que proliferam. Diante da falta de combustíveis, soldados e civis aventureiros vão à linha de frente para cortar madeira e vendê-la. Correm o risco de pisar numa mina ou de ser abatidos, mas é lucrativo para quem volta ileso: 400 marcos alemães por metro cúbico de madeira. Com economia, é possível fazer uma fogueira durante duas semanas.
No subúrbio sérvio de Illidza, a poucos minutos do centro, as casas são limpas e há madeira empilhada para o inverno. Mochilas às costas, crianças voltam da escola. Da guerra só se ouve o ruído abafado das detonações. A vida seria normal, não fossem as sanções econômicas impostas pela ONU à Iugoslávia como retaliação pelo apoio de Belgrado aos sérvios da Bósnia.
As sanções afetam os mais vulneráveis e reforçam a crença de que o mundo está unido contra os sérvios. Em Illidza, porém, insegurança e morte não rondam permanentemente. Em Sarajevo, a simples procura de água é um desafio aos franco-atiradores ou às bombas. Ninguém sabe quantos moradores –particularmente crianças– morreram de balde na mão.
Segundo a Unicef, um terço das bombas hidráulicas da cidade foram destruídas, as canalizações vazam cerca de 60% de sua água e 120 mil pessoas não possuem água corrente, sendo obrigadas a caminhar até 10 km sob a ameaça de bombas. O resto da cidade só tem água quando há eletricidade. Uma água muitas vezes portadora de vírus. Em julho, os hospitais contaram 700 crianças com enterocolite e 80 com hepatite A.
O único progresso: os sérvios de Pale não interromperam mais uma das fontes de água de Sarajevo, depois que a Cruz Vermelha consertou as tubulações. Na Bósnia central, porém, a guerra da água é intensa. Os muçulmanos de Kruscica cortam a água dos croatas de Vitez, que por sua vez deixam a seco os muçulmanos de Zenica, sitiados pelos sérvios.
Se Sarajevo tem frio, a Bósnia central tem fome. Em Zenica, uma multidão tentou arrombar armazéns da ONU. Caminhões com alimentos foram assaltados. "Nossos armazéns estão cheios, mas os sérvios bloqueiam nossos comboios", diz Ron Redmond.
Crianças trazidas da Bósnia central para os centros de refugiados oscilam entre agressividade e apatia. Alguns adultos se refugiam na loucura. Outros –a maioria– escolheram a dignidade como ato de resistência.

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