São Paulo, sábado, 8 de janeiro de 1994
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Eis o homem!

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Na Idade Média, sem muito o que fazer porque todos eram obrigados a acreditar mais ou menos do mesmo modo, os teólogos mais sofisticados levantaram a hipótese da intimidade com o castigo.
O Inferno foi inaugurado para punir os anjos rebeldes e, no início, eles sofreram literalmente o diabo ao trocar as brisas do Paraíso pelas labaredas da maldição eterna. Mas –dois, três séculos ou milênios depois– fatalmente se habituariam com a pena e de uma forma ou outra partiriam para outra. Qualquer refrigério, qualquer gota de orvalho que caísse sobre suas carnes incendiadas seria um orgasmo.
Pulo da Idade Média e do Inferno para a CPI do Orçamento –o que não chega a ser uma façanha. O castigo dos primeiros dias, a solenidade das perguntas, o ritual das respostas criaram uma rotina a qual todos se habituaram.
Já definiram o homem como o animal que se habituou a ser homem. Pois é isso mesmo: a CPI humanizou-se pelo hábito e nesta semana tivemos dois lances da humanização do hábito. Embora digam o contrário, é justamente isso que faz o monge.
Um deputado caiu em lágrimas, outro proclamou bem alto que colocava dúvidas sobre a mãe de outro membro da CPI. O monge está aí, ou melhor, o demônio está aí. Ou seja: "Ecce homo!" –aí está o homem.
Não entro no mérito das lágrimas ou do palavrão. São expressões elementares da natureza humana –e a CPI, em última análise, é um inquérito sobre a natureza humana.
A conclusão pode parecer cretina –mas a cretinice também é atributo humano. Pessoalmente, sou favorável a que a CPI dure o espaço necessário à apuração das responsabilidades.
O lado ruim da questão é que, mais um ou dois meses de CPI, os depoentes que ali se exibirem, com ou sem lágrimas, serão carregados em triunfo, merecerão o carinho que a plebe dedica aos heróis da grande lareira eletrônica que é a televisão. A humanização da CPI –dedicada a investigar a fraqueza humana do suborno e do roubo– pode apresentar a gigantesca pizza que muitos suspeitam estar no forno.

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