São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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É tempo de lutar a sério pelo futuro

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu sei que é difícil lutar por um novo projeto de governo que venha a centrar-se com decisão e coragem no combate à inflação, na erradicação da miséria e do desemprego e no compromisso de retomar o crescimento com outra estrutura de distribuição de renda. Mas é isso que terá de ser tentado a sério no próximo governo, já que não é mais possível aceitar que, ano atrás de ano, o futuro seja adiado indefinidamente.
Meu sentimento, hoje, neste começo de "ano velho", é que não é possível mudar o futuro apenas com a mágoa ou as lembranças do passado, mas que é preciso enfrentar o presente com ira, paciência e determinação.
Paciência e determinação não me têm faltado, mas esta semana depois do desânimo do fim de ano voltou-me a ira.
E motivos é o que não faltam, basta ter lido os jornais desta semana. Me irritam e angustiam particularmente as matérias econômicas sobre a especulação na ciranda financeira, o cinismo e a ignorância das elites econômicas e suas declarações sobre o não-pagamento de impostos e as causas do déficit público.
Ver declarado em alto e bom som o direito de enriquecer escandalosamente ser apresentado por uma corretora financeira como uma virtude do trabalho honrado; ler sobre a alegria com a entrada de US$ 21 bilhões de capital externo especulativo em 1993, que implicam um gigantesco endividamento externo e interno; enfim ler sobre um rosário de iniquidades que fariam perder a paciência de um santo. Como eu não sou santa, apenas um humilde "guerreira", vamos lá ao desabafo irado que está atravessado na minha garganta.
Que me perdoem os leitores e as autoridades que supostamente comandam a economia do país.
Se não se pode defender frentes de trabalho permanente em infra-estrutura urbana e rural para enfrentar o desemprego e a fome, nem se pode pagar um salário mínimo que permita apenas sobreviver, então não podemos comparar-nos sequer a Pinochet, que em seu programa de estabilização tentou providenciar pelo menos isso.
Se não temos o poder de cobrar impostos de renda pela riqueza e consumo aparente das pessoas e famílias mais ricas deste país, nem mesmo cobrar as dívidas dos grandes contribuintes (como no caso da Cofins), então talvez não valha a pena aumentar o imposto de renda das grandes empresas; serve apenas para que elas possam, sem problemas, anunciar publicamente que o repassarão aos preços.
É melhor tirar-lhes o previlégio de descontar o "imposto inflacionário" nos seus balanços, obrigando-as assim a pactuar uma política de preços e de rendas mais compatível com as necessidades de estabilização.
Se o Banco Central não tem poder para enfrentar o mercado financeiro nas questões da taxa de juros e da entrada e saída especulativa de capitais externos, então talvez tivessse sido melhor seguir o conselho de um ex-membro da atual equipe econômica e entregar a "arbitragem" da nova moeda a um "board" privado em vez de propor um "Banco Central Independente". Possivelmente os cinco maiores bancos brasileiros entregues a si mesmos, sem o apoio do Banco Central, acabariam cobrando uma taxa de juros sobre a compra de reservas internacionais menor do que aquela que o Tesouro vem pagando ao mercado. Que dizer dos "piranhas" do mal chamado mercado de capitais e das benesses do anexo 4.º da resolução 1289/87 do Banco Central, agravada pela desregulamentação financeira promovida a partir de 1991? Só de janeiro a novembro de 1993 entraram oficialmente US$ 21 bilhões, dos quais US$ 12,5 bilhões foram parar em especulação em Bolsa e em títulos da dívida pública, com ganhos fabulosos para os "agentes do mercado" que ganham sempre na queda de braço com o Banco Central.
Depois de um passeio proveitoso pelos desvãos do nosso mal chamado "mercado de capitais" saíram US$ 7,5 bilhões de volta para destino ignorado, mas de origem conhecida.
O que sobrou e o resto da entrada de capitais, captados pelos bancos e pelas grandes empresas à taxa de 9% a 10% ao ano no mercado internacional (e repassados a taxas astronômicas), foi constituir reservas do Banco Central, depois do giro obrigatório pela "ciranda financeira".
O governo paga por essas reservas emitindo títulos da dívida pública que rendem atualmente no Brasil entre 22% e 28% ao ano acima da variação cambial!
E pensar que me indignei quando as primeiras NTN cambiais foram lançadas a 14%!
A perda para o Tesouro que aplica as reservas em títulos da dívida pública americana ou papéis equivalentes no mercado internacional a taxas que variaram de 6% a 4% ao ano é uma glória!
Os lucros para o setor financeiro desta maravilhosa abertura da conta de capital e do mercado de câmbio e da suposta política monetária "dura" são excepcionais.
Assim as nossas elites financeiras enquanto despotricam contra os impostos e o excesso de gastos do governo vão perpetrando –com o beneplácito do Banco Central e sua política de juros altos, supostamente para conter a inflação– uma notável contribuição ao déficit público presende e potencial.
Enquanto isso o nosso bem intencionado ministro da Fazenda labuta nos corredores do Congresso e na imprensa escrita e falada pela zeragem de um déficit potencial de US$ 22 bilhões, numa moeda desconhecida, a ser anunciada, paradoxalmente, só depois que o Orçamento estiver equilibrado!
E o pior é que acredita que com isso está acalmando "as expectativas" do mercado!
Se a equipe econômica não é capaz de fazer logo uma reforma monetária que elimite de vez a ciranda financeira e autoriza que o mercado feche durante seis dias um "go around" que produz taxas de juros como as verificadas na última semana, então é melhor levar em conta as declarações do ministro argentino que diz que o Brasil está aumentando a sua competitividade à custa da miséria do nosso povo!
Afinal ele tem uma longa experiência, que não pode ser despresada, de lidar com esses assuntos de dívida pública, reformas monetárias etc.
E não consta que lhe tenha passado pela cabeça, com uma taxa de inflação de 40% e taxas de juros de 58% ao mês, tentar zerar primeiro o déficit "potencial".
Bem que gostaria de saber quais são as projeções da dívida pública interna e da dívida externa de curto prazo que a equipe colocou no orçamento e como conseguiu prever uma queda na conta de juros.
Mas isso é evidentemente uma maldade, porque não creio que esses dados sejam projetáveis, a continuar a atual liberdade de mercado de câmbio e de capitais para todos os agentes, públicos e privados.
Imagino que no caso de possível inadimplência dos clientes tomadores de 63 e de outras formas de crédito externo, os devedores pensem de novo em passar para a "viúva" a conta de uma nova "estabilização da dívida".
O presidente da República, Itamar Franco, vem perdendo a luta contra as taxas de juros escorchantes e contra a especulação que tanto o preocupam.
Já declarou também que não se sente em condições de lutar pelas suas convicções de não privatizar as empresas estatais estratégicas.
Enquanto isso a imprensa desencadeia uma campanha furibunda contra "os dinossauros estatais", contra o aumento de impostos e pelo corte de gastos, já no osso, da área social e da infra-estrutura. O ministro anuncia que não apenas os salários mas as tarifas públicas também devem ser reajustadas pela média (?) com uma inflação de 40%.
Quem sabe era melhor chamar algum economista de Chicago ou diretamente a equipe do Fundo Monetário Internacional e entregar-lhes logo o comando da política econômica? Não creio que eles fizessem exigências maiores do que as postas em prática pelos nossos "heterodoxos" ou "sociais democratas" de turno e talvez deixassem escapar uma ou duas estatais importantes como fizeram no Chile e no México.
Perdão, meus caros amigos e ex-companheiros da luta democrática, mas assim não dá.
Alguma coisa sensata e urgente tem de ser feita pelo que resta do atual governo, para que 1995 possa ser de novo um ano de esperança.

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