São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Computador opina sobre vida e morte de pacientes

RACHEL NOWAK
DA "NEW SCIENTIST"

Dezesseis pacientes bem-sedados estão deitados na unidade de terapia intensiva (UTI) em um dos principais hospitais-escolas dos EUA. De cada um sai um emaranhado de tubos e fios, que passam as medidas das funções vitais do corpo para um monitor situado ao lado da cama. Logo chega um residente e coleta amostras de sangue e urina. Ele as envia para o laboratório do hospital, onde uma série de equipamentos fornece informações sobre o estado dos orgãos internos do paciente. A seguir um médico aparece, examina cada paciente e prescreve um novo remédio para um, uma cirurgia para outro. O médico também pode analisar o caso de um paciente terminal e, com o consentimento da família, desligar o sistema de suporte à vida.
Neste hospital, o George Washington University Medical Center em Washington, o médico só toma essa decisão depois de consultar um computador. Lê os resultados de um programa chamado Apache 3 - (Acute Phisiology, Age, and Chronic Health Evaluation - Avaliação Crônica de Saúde e Aguda de Fisiologia e Idade), que prevê as chances de um paciente de sobreviver.
Os sistemas de apoio vital podem manter vivos doentes em estado de coma profundo que jamais conseguirão recobrar a consciência. Em certo momento, o médico deve decidir se o tratamento está apenas retardando a morte de alguém, enquanto priva outra pessoa de recursos valiosos. Nos EUA mais da metade das mortes nas UTIs ocorrem logo depois que o médico decide parar com o tratamento. O Apache 3 foi criado para ajudar os médicos a tomar tais decisões com mais certeza. Mas o impressionante poder do Apache 3 acendeu um debate. Se suas habilidades proféticas provarem ser superiores às dos médicos, por exemplo, os médicos serão moralmente obrigados a se dobrar ao "conselho do Apache"? E o desejo da maioria dos doentes de deixar a tomada de decisão a um médico solidário é motivo suficiente para se rejeitar o Apache? Há ainda a questão do dinheiro: as companhias de seguro e os sistemas de saúde pública podem ignorar a decisão do médico e oferecer verba para tratamento intensivo apenas baseando-se num computador?
Há uma cisão entre médicos britânicos e americanos diante do papel do Apache. Cerca de 200 UTIs nos EUA gastaram US$ 650 mil cada para instalar o Apache 3; o sistema agora está sendo testado no Reino Unido. Mas, enquanto muitos médicos que trabalham nas UTIs nos EUA adotam a nova tecnologia, seus equivalentes britânicos vêem a questão com reserva. "Há muita suspeita entre os europeus diante de soluções técnicas para problemas morais", disse Julian Bion, professor na unidade de terapia intensiva no Queen Elizabeth Hospital em Birmingham, Inglaterra.
Médicos dos dois lados do Atlântico admitem que racionar tratamento intensivo envolve decisões importantes e pressões financeiras não ajudam. O governo americano prometeu diminuir os altos custos do setor de saúde –a terapia intensiva custa em torno de US$ 3.000 ao dia. No Reino Unido, muitas UTIs estão em dificuldade por falta de recursos.
Quando os leitos são raros, os médicos são muitas vezes forçados a ceder o lugar ao primeiro que chegar. Charles Watts, diretor da UTI no Centro Médico da Universidade de Michigan em Ann Arbor, declarou que repartir os recursos desta maneira é tomar uma decisão da pior maneira. "A unidade pode rapidamente ficar cheia de pacientes que não têm a menor chance", disse ele. "O bom do projeto Apache é que define como o doente irá responder ao tratamento."
O Apache 3 prevê as chances de viver pelo menos tão bem como os melhores médicos, declara seu inventor William Knaus, diretor da UTI do Centro Médico da Universidade George Washington. Em um estudo, o Apache 3 previu que 20% dos 850 seriamente doentes nas 11 UTIs não conseguiriam sobreviver. Treze médicos experientes foram mais sombrios: previram que 25% dos doentes morreriam. A taxa de morte dos doentes foi de 21%
Para fazer suas previsões, o Apache 3 usa 19 dados sobre a saúde. Além disso, os monitores alimentam o computador com dados sobre o ritmo cardíaco e respiratório e a temperatura do corpo. As análises do laboratório acrescentam outros 12 dados sobre medidas. Os médicos fornecem mais três peças para este quebra-cabeça: a idade do paciente, a doença e, várias vezes ao dia, o estado de consciência dele.
O Apache 3 reúne toda essa informação calcula as chances de sobrevivência. Para fazer isso, primeiro dá "pontos de gravidade" no placar de saúde. A partir desses números, calcula as chances de sobrevivência. As equações que ele usa são feitas com uma colossal coleção de dados nos EUA que contém 17.440 perfis verdadeiros de pacientes em unidades intensivas, cada um com medidas fisiológicas, dados clínicos e eventual resultado.
Como um médico, o programa faz previsões baseado na experiência. A vantagem é que o Apache 3 "relembra" milhares de casos com uma precisão que supera a habilidade de qualquer médico. Além disso, o Apache 3 não sofre de mudanças de humor. "Os médicos são vítimas de suas experiências mais recentes", disse Knaus. "Se tiveram azar tendem a ser pessimistas. Se as coisas andaram bem, são muito otimistas."
O Apache 3 também não faz discriminação de idade, raça ou possibilidade de pagar. A maioria dos médicos assume que a idade avançada reduz dramaticamente as chances de um paciente sobreviver. Na verdade, disse Knaus, a idade avançada aumenta em apenas 5% a possibilidade de o paciente morrer.
Apesar de todas essas vantagens aparentes, médicos britânicos resistem à idéia de usar um sistema de software para predizer a possibilidade de um paciente sobreviver numa UTI. "Esqueça", disse Alasdair Short, diretor da UTI no hospital Broomfield em Chelmsford. Com o Apache "é possível obter uma probabilidade, mas não é possível prever. Tudo o que você faz é ser um agenciador de apostas", acrescentou. Por exemplo, o Apache 3 pode estimar que uma vítima comatosa de uma trombada com motocicleta tenha 5% de chance de sobreviver, mas não pode prever se o paciente estará entre os 95% casos similares que morrem ou nos 5% que se recuperam.
Martin Vessey, da Universidade de Oxford, disse que "o Apache jamais será usado para tomar decisões sobre tratar ou deixar de tratar um doente".
Os pesquisadores britânicos encaram o Apache como um auxiliar para tarefas de auditoria e comparação de performances de diferentes UTIs, e para medir o impacto de novos remédios e técnicas nos casos de sobrevivência.
Knaus e outros médicos americanos questionam a determinação de manter o risco de prever nas mãos de médicos. Michael Ackerman, da Biblioteca Nacional de Medicina em Bethesda, Maryland, acredita que só o orgulho impede os médicos de aceitar a nova tecnologia. "Você passa por oito anos de treinamento médico e então é substituído por um chip", diz. Mas concorda que os doentes preferem que a decisão seja tomada por um médico e não por uma máquina.
Diferentemente do computador, um médico pode incluir em seus cálculos dados intangíveis como a "vontade de viver" do paciente. Além disso, mesmo se as chances de o paciente sobreviver são mínimas, um médico tomará partido "e será sempre a favor do paciente", conclui Edward Major, diretor de tratamento intensivo do Morriston Hospital em Swansea.
Um estudo feito na França em 1984 reforça as afirmações de Major. Com previsões fornecidas pelo Apache, médicos franceses desligaram o equipamento que ajuda a viver mais cedo do que fariam se seguissem só seus instintos médicos. Mas, disse Knaus, o "número de mortes não aumentou, só a hora mudou".
Mesmo assim, é importante que um médico ignore as previsões do Apache 3 em alguns casos. O programa fará previsões erradas em caso de doenças raras, ou quando um novo tratamento mudar dramaticamente o curso de uma doença.
Para os médicos britânicos, há pelo menos mais um obstáculo que atrapalha a aceitação do Apache 3. Inúmeras UTIs tem poucos recursos. Bion disse que sua unidade recusa cerca de 180 pacientes por ano. Antes de o dinheiro ser usado em programas, é necessário haver leitos suficientes, além de equipamento e funcionários para oferecer cuidados aos que necessitam.
Mas o Apache 3 também recebeu apoio de alguns especialistas britânicos. Bion acredita que os pontos de gravidade "poderiam ser usados como um instrumento para ajudar o julga,ento médico da mesma forma que um exame de raios X ou de um exame de sangue."
Também nos EUA, nem todos os especialistas em terapia intensiva estão satisfeitos com o Apache. Bradley Fuhrman, diretor da UTI do Hospital Infantil Buffalo, em Nova York, teme o advento dos carrascos do computador. "Meu maior medo é que o sistemas de pontuação global como o do Apache substituam os médicos na questão de prognósticos quando as companhias de seguro ou governos decidirem que verba destinar à terapia intensiva", disse.
Watts , entretanto, permanece leal em seu apoio ao Apache. Relembra o caso de uma jovem que sofria de câncer e de uma série de infecções no sangue, pulmões e cérebro. "Houve um constante declínio durante umas duas semanas. Estávamos pessimistas." Chegou a conversar com a família sobre a possiblidade de desligar a aparelhagem de ajuda para sobreviver. Mas durante uma ronda, observou que "a pontuação dela no APACHE tinha dado uma reviravolta. Houve uma queda de 92% para 70%". Com tantos órgãos envolvidos, Watts afirmou não conseguir obter uma visão completa. O Apache colocou as coisas no lugar. Com um tratamento mais agressivo, a doente se recuperou e ganhou mais um ano de vida.

Tradução de Lise Aron

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