São Paulo, segunda-feira, 10 de janeiro de 1994
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Uma dúzia

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Todo domingo é assim. O político sai de cena e o traficante toma seu lugar. Todo domingo tem algum morto em favela do Rio. Ontem, foram 12. Outro massacre, numa cidade acostumada aos massacres. Sempre aquelas imagens de corpos pela rua, como no Jornal de Domingo. Sempre aquela gente falando com experiência dos fuzis e das granadas, como se fosse um correspondente de guerra, no Fantástico.
Um depoimento foi particularmente chocante, ontem. Uma jovem negra descrita apenas como "sobrevivente", no Jornal de Domingo, falou como conseguiu escapar do massacre do dia, no Rio.
"Eles chegaram e invadiram a minha casa. Aí eles ficaram tudo em volta de mim para me matar. Eu e a minha colega grávida. Ela levou três chutes. Me deram chute, me deram tapa. Aí o outro homem falou, 'vamos matar ela aqui agora, bota ela na parede para a gente matar'. Aí foi a hora que os meus colegas chegaram em cima dando tiro. Aí eles saíram e foi quando eu consegui escapar."
Os "colegas" que salvaram a vida da jovem também eram traficantes. A "noite de horror", como descreveu o Fantástico, foi uma "guerra", como descreveu o Jornal de Domingo, entre duas quadrilhas de tráfico. Uma delas invadiu a favela da outra, matou uma dúzia e distribuiu os corpos num raio de seis quilômetros. "Ao lado dos corpos, um bilhete dos assassinos: 'Parasão não briga, mata'."
Os horrores não ficaram por aí. Foram sete horas de tiroteio, fora a explosão de pelo menos uma granada. E nada de polícia. Ou melhor, "segundo os moradores, os bandidos invadiram a favela num caminhão escoltado por três viaturas da polícia". Que depois teria ido embora, voltando à tarde com "mais de cem policiais, que só apreenderam alguns aparelhos eletrônicos e prenderam dois suspeitos".
Ou seja, a polícia não fez nada. E ainda garantiu que "todos os mortos são ligados ao tráfico", como registrou o Fantástico. Mesmo a mulher grávida, mesmo o menor de idade. Todos traficantes, segundo a respeitável polícia carioca. Não é à toa que a jovem "sobrevivente" considera os traficantes de sua favela "colegas". Eles é que são a polícia, para ela. Eles é que são o Estado.

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