São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 1994
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A mentira em alemão

JOÃO BATISTA NATALI

"Lebensluge" é uma palavra alemã com delicioso alcance operacional. Ela significa um tipo de mentira que todos procuram digerir para vivenciá-la como verdade. Surge em função dela uma comunidade baseada na crença, e os indivíduos que dela fazem parte tecem mutuamente laços que se tornam um dos pilares da estrutura política e social.
As elites brasileiras do final do século 19 construíram a convicção de que a eleição de um presidente seria uma oportunidade periódica de fazer com que a sociedade optasse por propostas que modelassem e aperfeiçoassem as instituições republicanas.
Esse projeto se transformou rapidamente na forma de preservação do poder oligárquico. Mesmo assim, e até às vésperas da Revolução de 30, o Partido Republicano Paulista e assimilados continuaram acreditando nas virtudes da delegação das rédeas do Estado àquele que se dispusesse a executar o conjunto de propostas que resolvesse a controvérsia do confisco cambial, preservasse o café da saúva e respondesse à idéia de bem comum.
Entre 1945 e 1964, o poder se estruturou de acordo com uma "Lebensluge" que pressupunha a existência de uma pirâmide institucional com sua base sensivelmente ampliada. A Constituição de 1946 incorporou à discussão política setores antes excluídos. Por trás de partidos e lideranças populistas, as mesmas elites viam aquele tipo de democracia como a maneira de agregar aos centros de moldagem do Estado parcelas da população que compartilhariam dos resultados do desenvolvimento econômico.
Não funcionou. A "Lebensluge" é implacável. A riqueza era pouca e os privilégios numerosos.
A partir de 1985, com novos atores no processo, vieram a "Nova República" e o "Brasil Novo", cada qual, em seu momento, debatendo-se na busca de conteúdos para sua viabilização. Não porque fossem etiquetas ocas, mas porque expressavam coligações momentâneas de interesse e por isso exprimiam uma tênue verdade social. Sucumbiram à descrença generalizada, que é ontologicamente fatal para qualquer "Lebensluge".
Com uma nova campanha presidencial, a mentira consiste em acreditar que subsistirão condições para se discutir projetos alternativos de políticas públicas, ou ao menos que essa discussão ocorrerá por debaixo da maquilagem que os marqueteiros preparam para enfeitar seus candidatos.
É uma hipótese impossível. O Estado hoje cheira incompetência por não conseguir segurar sua moeda. Os problemas nacionais cresceram em lugar de diminuir. O campo está mais fértil para a mistura de certo messianismo com a agressão pessoal.
A questão é então de saber até que ponto não estaria em jogo uma verdade um pouco maior, prescrita pelo liberalismo, e que consiste em acreditar que o livre confronto de idéias leva à escolha dos mandatários e tem, como subproduto, o enriquecimento informativo do cidadão.
O fato é que a democracia não fracassou, mas seu modelo é hoje raquítico. Deixar de reconhecê-lo é se deixar iludir pela coreografia eleitoral e incorrer na mentira em alemão.

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