São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 1994
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Rio tenta impedir consolidação do tráfico

ANTONIO CARLOS DE FARIA
DIRETOR-ADJUNTO DA SUCURSAL DO RIO

O Rio vive no limiar entre o crime desorganizado e o organizado, com as quadrilhas de traficantes travando uma guerra pela hegemonia. Esse é o quadro da cidade, segundo a coordenadora do movimento "Viva Rio", Clarice Pechman, 39. "Nós temos que agir, de forma consequente, para evitar que se concretize essa organização do tráfico." Ela defende uma segurança pública e privada "ostensivíssima" da orla e a criação de centros de cidadania nas favelas.
Os jovens de 13 a 19 anos, homens, ganharam o status de foco das atenções do Viva Rio. É neste setor social que a violência, o tráfico de drogas e armas encontram o fermento para se expandir. A economista Clarice Pechman diz que é aí que devem ser investidos os recursos, mesmos escassos, deixando em segundo plano os menores ou idosos carentes. O movimento surgiu em setembro passado após a chacina de Vigário Geral, em que 21 pessoas foram mortas.
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Folha - O Rio tem solução?
Clarice Pechman - Claro que tem, mas para isso temos que vencer o sectarismo que tomou conta da cidade. Hoje, no Rio, todos somos apartados. Isso é uma coisa que aconteceu de uns dez anos para cá e mudou a natureza das relações. Sempre houve ricos e pobres, mas não havia essa sociedade de apartados.
Folha - Por que isso ocorreu?
Pechman - Faltou um trabalho organizado da sociedade civil em conjunto com uma política de governo. Não tivemos ações de cidadania e governo continuadas. Se estabeleceu uma atitude de resignação, uma cultura do medo.
Folha - Na visão do "Viva Rio", quais são os principais problemas da cidade?
Pechman - O principal é a violência, que no Rio está altamente concentrada na faixa dos 13 aos 19 anos e é basicamente masculina. Temos hoje um nível de violência que se inicia muito cedo na vida do rapaz. Aos 20 anos ou ele é um "vencedor", ou ele está morto. Nós temos que dar ocupação aos integrantes dessa faixa social, quer isso signifique treinamento técnico, esporte, lazer, qualquer tipo de ocupação.
Folha - Então, entre todos os setores carentes, esse é o que deve ter tratamento prioritário?
Pechman - Certamente. Se temos problemas de menores de rua, se temos problemas com idosos, se temos problemas com rapazes de 13 a 19 anos e temos recursos escassos, vamos atender aos adolescentes. Entre eles, se tivermos homens e mulheres, vamos atender aos homens.
Folha - Como se dá a introdução desse jovem no mundo da violência?
Pechman - Uma maneira é o tráfico de drogas e o de armas. A gente não pode separar uma coisa da outra, as duas formas estão interligadas e vão ter que ser tratadas ao mesmo tempo. O tráfico exerce uma atração muito grande para esse jovem. Com o tráfico, o jovem pode conseguir dinheiro, comer, viver, mesmo com alto risco. Pode ganhar status na comunidade local, principalmente junto às meninas. Há algo de sedução na participação no grupo dos traficantes.
Folha - E o que pode ser feito para vencer essa sedução?
Pechman - Para tentar captar a atenção desse jovem para outra atividade temos que usar as estruturas de organização já existentes. Um caminho está nas galeras funks do Rio, que reúnem cerca de 1,5 milhão de jovens. Hoje, esse movimento é mais conhecido pelo seu lado de violência, mas temos que dar apoio ao seu lado positivo, que é maior. As galeras são uma via alternativa de ocupação, de lazer, de realização para esses jovens. Eles estão exatamente na faixa dos 13 aos 19 anos e podem ser trabalhados no sentido da profissionalização da música, da dança, das produções de vídeos, clips, eventos.
Folha - Podem virar uma atração do roteiro turístico?
Pechman - Isso, entrar para o calendário de eventos da cidade. Podemos usar o mesmo canal dos movimentos funk sem a conotação sórdida. Vamos aproveitar esse movimento que já existe para atrair os jovens e não deixá-los à mercê do tráfico de drogas.
Folha - Tráfico de drogas e armas são problemas que envolvem as fronteiras, o governo federal. Como tratá-los?
Pechman - Tem que haver aí um entendimento muito grande de estratégia, de inteligência, que passa por município, governos estadual e federal. Se não houver esse entendimento, qualquer ação vira uma intervenção federal no Estado. Se o governador não estiver sintonizado com aquilo que venha a ser feito, isso vira intervenção. É uma questão muito delicada, principalmente por estarmos num ano eleitoral.
Folha - Como o "Viva Rio" vê a questão do crime organizado que atua no Rio?
Pechman - O que está acontecendo do Rio é uma busca por um crime organizado. Ainda não é um crime organizado. Todo dia temos mortos e isso não vai parar enquanto não houver hegemonia de algum grupo. Estamos no limiar entre um crime desorganizado e um crime organizado. O único crime organizado do Rio é o jogo-do-bicho. Na década de 60, tivemos disputa de espaço entre os bicheiros, que é o que estamos vendo hoje entre os traficantes. Nós temos que agir, de forma consequente, para evitar que se concretize essa organização do tráfico.
Folha - E qual seria essa forma de ação?
Pechman - Uma das idéias surgidas no Viva Rio são os centros comunitários de defesa da cidadania. Um local na própria favela com serviço de polícia, cartório para documentos e serviço de Justiça para pequenas causas. Ou seja, um centro que atenda à comunidade sem burocracia, sem dificuldades.
Folha - É o Estado presente?
Pechman - Isso. A presença do Estado nessas comunidades que hoje estão à mercê do tráfico. A grande maioria das pessoas que moram na favela não querem esse domínio. Vamos dividir o espaço dominado pelo tráfico com a legalidade. Mas existe uma dúvida muito grande. Será que não será necessário uma ação precedente de força? E toda ação de força traz riscos, pois ela não isenta o inocente, por isso ela tem que ser muito avaliada.
Folha - Os inocentes já estão sofrendo. Nesta semana, um traficante despiu 50 pessoas numa favela e matou uma delas.
Pechman - Isso foi uma loucura. Essas pessoas dificilmente vão acreditar numa ação do Estado, por isso vamos disseminar os centros comunitários. Outra coisa que estamos discutindo no "Viva Rio" é a implantação de uma segurança pública e privada, ostensivíssima, em toda a orla marítima do Rio. Esta cidade depende do turismo de uma forma extraordinária. E o turismo vem sofrendo barbaramente com a violência. Temos uma infra-estrutura subutilizada, não temos perspectivas de melhora disso que não incluam uma ação ostensiva de força.
Folha - Que ações são necessárias para isso?
Pechman - Nós não temos uma regulamentação da segurança privada. Temos que regulamentar, inclusive com a possibilidade legal do segundo emprego para o policial.
Folha - O necessário não seria remunerar bem para que o policial trabalhe com eficiência no seu próprio emprego?
Pechman - O duplo emprego dos policiais nos EUA é comum. Não temos dúviga que é necessário pagar bem o policial, mas não podemos deixar de reconhecer uma situação existente de duplo emprego, que hoje é irregular e precisa de regularização. Com isso, o policial, no seu segundo emprego vai poder, oficialmente, agir como polícia.

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