São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 1994
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Seleção do século faz justiça ao Divino

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Caiu a sopa no mel: exatamente no dia em que a Folha publica seu caderno especial "Cem Anos de Futebol", a Confederação Sul-Americana resolve homenagear o Divino Domingos da Guia, que entrou na seleção de todos os tempos ao lado de Luís Pereira, num arranjo aceitável nos tempos que correm. Afinal, Domingos antecipou em quase 30 anos a figura do líbero tecnicamente superdotado, personificado, a partir da segunda metade dos anos 60, por Bobby Moore e Franz Beckenbauer, e que, hoje em dia, tem em Franco Baresi o mais digno sucessor.
Nos tempos de Domingos, por aqui, jogava-se ainda no clássico 2-3-5: dois beques, três médios e cinco atacantes. Os asa-médios, ou alfos (abrasileiramento do inglês half) direito e esquerdo, marcavam os pontas, enquanto o centromédio distribuía o jogo no círculo central, apoiado pelos dois meias (insiders), que iam e vinham fazendo a ligação entre defesa e ataque. Lá atrás, um zagueiro (beque de avanço) saía para dar combate ao atacante, enquanto o outro (beque de espera ou stopper) ficava na área para o que der ou vier. O desespero de sua derradeira e solitária função à frente apenas do goleiro forjava sua personalidade e seu estilo: um armário com duas rodas que chutava canelas e bola para onde seu nariz indicasse.
Não Domingos, que vi em campo já aposentado, com 40 anos, disputando um sul-americano de veteranos, no Pacaembu, em 53. Mesmo então ainda impressionavam sua imponência e elegância. Contam os que o viram no auge que possuía, sobretudo, um senso de colocação extra-sensorial. E uma frieza imperturbável, que lhe permitia praticar sofisticados atos de cirurgia ao tirar a bola do adversário, no momento de maior agonia de seu time. Não satisfeito, aplicava dois, três e até quatro dribles no avante e saía com a bola submissa aos seus pés, fronte erguida, impávido, enquanto a torcida delirava com mais uma domingada.
Portanto, tê-lo ao lado de Luís Pereira, lídimo herdeiro de Domingos, embora sem a mesma elegância, não é nenhum despropósito. Sobretudo, porque Pereira era muito mais fogoso e inquieto, despreendendo-se toda hora para o ataque. Formariam hoje uma bela dupla de área.
Duro seria conjugar Zito, Zizinho, Didi e Pelé no mesmo meio-campo, pois mestre Ziza e o príncipe etíope de rancho de Carnaval, na imagem de Nélson Rodrigues, ocupavam o mesmo espaço do campo, com funções rigorosamente iguais. Um dos dois poderia ir para a meia-esquerda, como, aliás, ocorreu no Sul-Americano de 53. Mas, aí, e Pelé? O Rei jamais abriu mão dos seus domínios. Tanto que, certa vez, contra os argentinos, Feola pediu para Pelé abrir na ponta-direita, a fim de escapar da marcação cerrada a que estava submetido no meio. Pelé, encostou na lateral do campo e ostensivamente se omitiu da partida. Além do mais, se perguntarem a Didi e Zizinho se um deles abriria mão de sua escalação para outro, ambos responderiam na hora com a mesma solução: tanto faz quem seja o armador, desde que Canhoteiro entre na ponta-esquerda. Isso, aliás, está documentado nos depoimentos que Zizinho e Didi gravaram para a TV Cultura, que os reproduziu ainda outro dia.

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