São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
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Perdas e danos

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Faz muito tempo, cheguei a ter algum entusiasmo pela fenomenologia de Edmund Husserl, principalmente depois que comecei a ler Max Scheler, um husserliano que morreu em 1928, dez anos antes do mestre. Foi um autor que entrou em moda, como Sartre e Heidegger, saiu do repertório, mas uma de suas obras ("Wesen und Formen der Sympathy") merece releitura –e era o que estava fazendo no feriado local do padroeiro da cidade. Obra datada, sem dúvida, mas com aquele apelo de unir contrários como o cristianismo e uma visão menos empírica do mundo.
Perdoem o exórdio metido a erudito. Não leio alemão, tenho acesso à literatura que os italianos chamam de "tedesca" através de traduções inglesas ou francesas. Mesmo assim fiquei irritado com a obrigação de interromper a leitura e ter de enfrentar os noticiários da TV. Afinal, não é à custa de Husserl ou Scheler, não é com a fenomenologia nem com a visão cristã do mundo que compro o meu leite e o leite dos meus, incluindo nesse "leite" a ração de minhas setters irlandesas.
Manhã de ontem estou ligado à Rede Brasil ouvindo o relatório da CPI. Volta e meia uma frase solta impede maior e melhor concentração no que estou ouvindo. "Fatos pretéritos", "mecanismos transparentes", "pessoas físicas e jurídicas" (há um bafio fenomenológico nessa distinção entre pessoas), "instituições maculadas", "artigo 16, parágrafo 5, inciso 3" –um cipoal de fórmulas que, de uma forma ou outra, custaram o meu dinheiro, custam meu tempo e custam meu interesse.
Não disponho de advogado de plantão, desses que os prejudicados invocam em tom de ameaça: –"Isso é assunto dos meus advogados!" Apesar disso, tenho vontade de procurar um profissional competente que promova uma ação contra a República Federativa do Brasil, ação de perdas e danos. O tempo que venho gastando e a paciência dos leitores que venho torrando com esses depoimentos, relatórios, apensos e separatas devem ter um valor mensurável, senão em cruzeiros reais, ao menos numa reparação cartorial: admitir pacificamente que eu me torne búlgaro.

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