São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O assalto ao brasileiro e novas surpresas

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Brasileiro é supreendente. Protesta, esperneia –com toda a razão– contra um novo imposto de 0,25%, que vai retirar alguns trocados de sua renda. Questão de princípio. A revolta é correta.
Mas o brasileiro, até de nível universitário e com pretensões a cidadão, fica quietinho quando é literalmente assaltado por grupos poderosos, com a ajuda de ministros, que roubam milhares ou milhões de cruzeiros da conta de cada um de nós.
Advogados, secretários, metalúrgicos, jornalistas, engenheiros –todos os brasileiros foram e estão sendo roubados diariamente. Bovinamente. Como? O assalto engole o dinheiro do FGTS.
O que vem acontecendo com o FGTS é estarrecedor. Desde o ano passado, por lei, a Caixa Econôica Federal passou a liberar o dinheiro das contas inativas. São de 70 a 90 milhões de contas, com um valor calculado entre US$ 4 bilhões e US$ 6 bilhões –mas que pode chegar aos US$ 10 bilhões ou mais se o brasileiro abandonar a indiferença atual.
A forma como esse dinheiro vem sendo liberado é inacreditável. O trabalhador, dono do dinheiro, preenche um formulário e espera algumas semanas para recebê-lo, pois é preciso um prazo para localizar as contas, já que elas podem datar de 10, 15 e até 25 anos. Até aí, aceitável. Na hora da quitação é que o insólito acontece. O trabalhador recebe um papel impresso, no qual está escrito o valor que a CEF diz que ele tem a receber. Só.
Pasme-se. São milhões de brasileiros, donos de quase uma centena de milhões de contas inativas, envolvendo bilhões de dólares. Na hora de receber o dinheiro, assinam no escuro. Não recebem um extrato, um demonstrativo, para saberem se as empresas realmente depositaram as importâncias certas, nas épocas certas. Para saber se os bancos lançaram realmente este dinheiro nas suas contas. Se foram creditadas juros e correção.
Mais uma vez o Brasil surpreende o mundo, cria uma inovação de embasbacar: milhões de pessoas que não exigem documentos mostrando a evolução de um dinheiro que lhes pertence. Pessoas que teriam CR$ 1 milhão só recebem CR$ 5 mil (o exemplo é real) –e acham que tudo está bem. Dinheiro, patrimônio, péculio de 10, 15, 20 ou 25 anos jogado fora, roubado.
É possível mesmo que as contas do FGTS tenham sofrido monumentais desvios, fraudes que deveriam ser investigadas para seus donos receberem o dinheiro que é seu? Certeza absoluta. Ainda no final de 93, uma auditoria –noticiada por esta Folha– mostrava que 20% dos depósitos atuais, nas contas ativas (do atual emprego do trabalhador) são desviados.
Note-se bem: há os casos em que as empresas não depositam, isto é, sonegam –e que têm sido mais ou menos tolerados pelo ministro do Trabalho ao longo dos anos. Mas, além disto, o que a auditoria mostrou é que, mesmo no caso dos depósitos feitos pelas empresas, 20% do dinheiro é desviado. Pelos bancos ou por eventuais fraudadores dentro da CEF, que centraliza as contas.
Veja-se bem: contas atuais, que teoricamente o trabalhador deveria saber como estão evoluindo, são fraudadas. Imagine-se agora contas de 10, 15, 20, 25 anos. Elas sempre foram roubadas, alvo de fraudes e desvios dentro dos próprios bancos, conforme relatórios de órgãos fiscalizadores como o TCU. No conjunto são bilhões de dólares. Individualmente, são pequenas fortunas para trabalhadores que, no entanto, toleram ser roubados. Por quê?
A aberração está aí. Tem que ser combatida pelas entidades sindicais, já. O governo Itamar, ético na fase em que dependia da vontade do presidente, pode encaminhar projeto ao Congresso mudando este quadro. Os resgates de contas devem ser acompanhados pelos sindicatos ou entidades como o Dieese, que deverão checar os extratos da CEF.
São milhares de cálculos de juros, correção monetária, depósitos que nem mesmo um trabalhador de nível universitário terá condições de fazer. Exige assessoria técnica. Sugestão: os sindicatos podem até ser remunerados por este trabalho: uma taxa de 0,1% a 0,5% do valor do FGTS recebido pelo trabalhador, por exemplo. Atenção: mesmo as contas inativas, já sacadas, seriam verificadas pelos sindicatos.
Mas há muitas outras surpresas em cena no país. Ainda na mesma área do FGTS, tem aquela história inacreditável do ministro do Trabalho, Walter Barelli, dizer que "o gato comeu o dinheiro do Fundo", ou que é tão difícil administrá-lo que o melhor é sua extinção. Incumbido por lei de fiscalizar o FGTS, o ministério faz o jogo dos grupos que saqueiam o Brasil, assaltam a classe média e o povão, com estas constatações levianas.
Não há "gato" que coma o dinheiro do Fundo, da merenda, das rodovias. O dinheiro público não se evapora. O dinheiro do FGTS foi emprestado a Estados e municípios –para serviços de água, esgotos, habitação e infra-estrutura em geral. Eles têm que ser cobrados. Além disto, o dinheiro do FGTS foi emprestado a grandes construtoras e incorporadoras, também para imóveis de luxo. São empréstimos documentados. Elas têm que pagá-los.
Cabe aos ministros pararem de divulgar esta visão mal-intencionada de que o dinheiro público "some" ou é "mal aplicado". Ele é roubado por grandes grupos. Porque é mal cobrado.
É uma farsa, um embuste ficar dizendo que a ex-ministra Margarida fez empréstimos irregulares com o FGTS e agora não há como recuperar. Mentira. Quem tomou o empréstimo, tem que pagar. Chega de invencionice. De jogar a culpa na Caixa Econômica Federal e dizer que ela "aplicou mal" e está sem dinheiro. A obrigação dos ministros e da CEF é de ir atrás dos devedores. Chega de cumplicidade.
Outras surpresas ficam para uma próxima vez. Mas vale a pena registrar uma revelação do assessor Milton Dallari, da equipe do ex-ministro Delfim Netto e indicado pelo deputado José Serra para assessorar FHC.
Incumbido de discutir preços com seus amigos empresários, Dallari justificou a remarcação ocorrida em dezembro. Na sua visão, os empresários não sabiam o que fazer, pois há sete meses –desde a posse de FHC– ninguém do governo discute a alta de preços com as empresas...
Então, é verdade. Esta promessa, o ministro FHC cumpriu. A única. Ele disse que não ia cuidar de resolver o problema da inflação, ou alta de preços. Não cuidou mesmo. Fique claro: a inflação que está aí é mesmo de todal responsabilidade do ministro.
Pena que, agora, com o Plano FHC, quem vai pagar o pato mais uma vez é a classe média e o povão. De novo, mais impostos. De novo, salários achatados, reajustados pela média. De novo, vencimentos do funcionalismo, aposentados e até o salário mínimo amoralmente achatados. Tudo em meio a preços enlouquecidos e lucros crescentes.
O brasileiro é surpreendente. Aceita até planos em videotape.

Texto Anterior: Sapatos e candidatura
Próximo Texto: Fôlego curto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.