São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Patente de DNA e seres vivos é outra polêmica

A Europa aceita até células humanas nas patentes

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Se no domínio da bioética o foco da polêmica se concentra sobre a manipulação de embriões, no caso do direito de propriedade intelectual as mais violentas reações surgem contra o patenteamento de seres vivos.
Nesse campo também se opõem fundamentalistas –católicos e ambientalistas para quem vida e natureza são intocáveis– e liberais. Na opinião destes, tudo deve ser permitido, não só qualquer forma de experimentação como também o direito de explorar economicamente a vida "engenheirada", como se diz no jargão biotecnológico. A diferença está em que a opinião pública brasileira vem presenciando uma polêmica acesa sobre o tema, alimentada precisamente pelos interesses econômicos dessa que é considerada a indústria do futuro.
O pomo da discórdia é o projeto de lei nº 115 aprovado pela Câmara dos Deputados, conhecido como "lei de patentes", que se encontra atualmente em exame pelo Senado Federal (o relator da matéria, senador Élcio Alvares, PFL-ES, ainda não apresentou parecer, mas deve ser substituído em função de sua provável ida para o Ministério da Indústria e Comércio). A proposta original partiu do ministério do então presidente Fernando Collor, em resposta às pressões do governo dos EUA, que ameaçava o país com sanções comerciais caso não adotasse legislação patentária.
Entre os dois extremos, o daqueles que advogam a doutrina norte-americana de patentear tudo que existe sob o Sol e o dos que defendem limitações de fundo ético ou religioso, chegou-se a uma solução de compromisso. Na versão da Câmara, admite-se somente a patente de microorganismos alterados geneticamente e vinculados a um processo industrial.
Segundo o físico Ennio Candotti, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi essa vinculação com processos que tornou a patente de microorganismos mais aceitável. Segundo Candotti, um mesmo organismo usado em dois processos distintos teria de ser patenteado duas vezes –ou seja, ele mesmo não estaria sendo patenteado.
Para Marcio de Miranda Santos, 42, diretor-interino da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a proposta "avançou muito, mas não é 100% satisfatória". Além de reafirmar a posição da Embrapa contrária a patentear qualquer ser vivo, ele objeta que o projeto de lei carece de definições claras para "microorganismos" e "processos industriais". Segundo Santos, a legislação européia admite até mesmo linhagens de células humanas cultivadas em laboratório na categoria dos microorganismos.
O "privilégio" da patenteabilidade conferido a microorganismos não decorre, porém, de alguma preferência evolutiva por animais e plantas superiores, mais próximos do homem. Simplesmente, é na escala das bactérias, fungos e células que opera a parte do leão da indústria biotecnológica.
Para o diretor da Embrapa, seria precipitado da parte do governo brasileiro adotar esse tipo de proteção antes de criar uma legislação própria sobre acesso de pesquisadores e empresas estrangeiras à rica fonte de informação genética guardada em seus diferentes ecossistemas. Isso é o que prevê a Convenção sobre Biodiversidade da Eco-92, ratificada na terça-feira pela Câmara. Sem tal legislação, os brasileiros correm o risco de ter de pagar por exemplo para usar um fungo da Amazônia com genes modificados, sem que a empresa estrangeira tenha pago um centavo pela matéria-prima genética.
Aos adversários ferrenhos da patente sobre a vida resta um consolo. Se aprovada como está, a lei de patentes –que exclui seres vivos e DNA naturais– impediria a proteção do trabalho do grande vilão dessa polêmica, o geneticista norte-americano Craig Venter. Ele divulgou em fevereiro de 1992 um processo automático para decifrar genes relacionados com o cérebro humano e a instituição para a qual trabalha depositou milhares de pedidos de patentes para as descobertas. Ainda que se faça escasso uso dela, no Brasil a massa cinzenta ainda seria de domínio público. (ML)

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