São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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O urso enfurecido

ALVIN TOFFLER; HEIDI TOFFLER

O outro grande participante deste jogo é, obviamente, a Rússia, com dezenas de milhares de armamentos nucleares táticos, seus mísseis balísticos intercontinentais, seu exército fragmentado, seus mafiosos e seus racistas, políticos do tipo nazista que ameaçam reviver o império czarista e marchar até o Indico. Tendo seguido o desastroso conselho dos economistas que administraram uma "terapia de choque" para acelerar a criação de uma economia de mercado, tendo ignorado a agonia de dezenas de milhões de desempregados, de pensionistas atingidos pela pobreza e de soldados desmobilizados, a Rússia continuará sendo uma bomba-relógio nas décadas por vir, uma ameaça à independência de suas antigas repúblicas, inclusive aquelas da Asia Central.
Para o futuro previsível, não haverá devolução das ilhas Kurilas ao Japão, nem o compromisso que exclui o "primeiro uso" de suas armas atômicas, nem haverá garantias de que a política do "perigo amarelo" não irá reacender as tensões com a China e a Asia em geral.
Todos esses eventos também afetarão o futuro da península coreana. Lá, embora não seja inevitável, continua sendo provável que a Coréia do Norte e do Sul venham, em algum momento, a se fundir, seja num Estado unificado ou numa federação de alguma espécie. A natureza do casamento e a mudança militar que ela implica irá reverberar por toda a região. Confrontada com uma China possivelmente instável de um lado, uma Rússia instável (ou uma Sibéria possivelmente independente) do outro, um Japão nervoso nas cercanias e um Estados Unidos vacilante, não seria nem um pouco surpreendente que a nova Coréia exibisse mais que um quê de paranóia.
Se o atual pesadelo do Japão é uma Coréia do Norte com armas nucleares, imagine sua reação à possibilidade de algum dia uma Coréia reunificada, com uma população de, digamos, 75 milhões, poder vir a fazer parte do clube dos países "quase nucleares" –que clamam um status não-nuclear, mas que estão distantes um minúsculo passo da posse de armas atômicas. Se levarmos em conta as instalações e o plutônio (por ora oculto e comprado através de incorporação) e se somarmos a isso a considerável capacitação tecnológica da própria Coréia do Sul, tal cenário pode parecer improvável hoje –mas é impossível?
Muito antes disso acontecer, o próprio Japão poderá ter-se decidido tornar nuclear na autodefesa –se é que, de fato, já não atingiu o status "quase nuclear".
Uma vez que, certamente, nada sufoca mais o contínuo crescimento econômico que a instabilidade política e militar, um futuro deenvolvimento na região bem poderá depender mais de como tais problemas são tratados do que das próprias estratégias econômicas.
Um mau karma
O mesmo se aplica à infindável disputa entre uma India nuclear e um Paquistão quase nuclear. A India já está lutando, sem qualquer sucesso digno de nota, para pôr um fim a vários movimentos separatistas regionais. Também está dilacerada pelo conflito entre os fundamentalistas hindus e muçulmanos. E, recortando esses cismas, estão aprofundando as divisões que refletem as mesmas três seções dos interesses econômicos e das elites que testemunhamos na China e em outros lugares.
Assim como a China, a India possui uma vasta população de trabalhadores rurais, um considerável setor fabril baseado em mão-de-obra barata e não-qualificada e um crescente setor de Terceira Onda que vende informações, software e serviços fortemente dependentes de conhecimento. Os interesses políticos e econômicos desses setores e de suas elites muitas vezes entram em intensos conflitos. Também aqui, qualquer cenário num futuro muito distante deve levar em consideração a possível desintegração do Estado. As probabilidades de ruptura podem ser baixas –mas a extinção da União Soviética sugere que muitos Estados são mais frágeis do que aparentam na superfície. Uma ruptura sangrenta da India, que quase certamente envolveria o Paquistão, teria ramificações em todo o mundo, especialmente no mundo muçulmano já em convulsão.
No Ocidente, esquece-se, frequentemente, que o Islã é primariamente uma religião asiática –a Indonésia sozinha tem mais muçulmanos que todos os países árabes da Africa do Norte e Oriente Médio juntos. A preocupação em relação ao destino dos 100 milhões de muçulmanos da India em qualquer guerra civil poderia desencadear surtos de terrorismo em todo o mundo –e especialmente nos países africanos e sul-asiáticos, que têm uma apreciável população indiana.
Numa época de conflitos étnicos em ascensão, a Asia deve também se ajustar à ascensão assustadoramente rápida de um outro grupo ainda –os chineses que vivem fora da China. As minorias chinesas representam uma poderosa força econômica na Indonésia, Malásia e Filipinas, sendo muitas vezes injustamente responsabilizadas pelas dificuldades econômicas das maiorias populacionais desses países. Se houver um arrefecimento do crescimento econômico, mesmo que temporariamente, os demagogos irão insuflar os ódios étnicos por toda a região.
O estabilizador
Finalmente, é obviamente impossível imaginar o Pacífico Asiático do ano 2020 sem levar em consideração o futuro distante dos Estados Unidos. Qualquer lista dos crescentes infortúnios econômicos e sociais da América seria tão longa quanto uma lista telefônica.
A lista das mudanças necessárias é similarmente longa, havendo poucos sinais de que seu anacrônico sistema político possa implementá-la. Isto sugere que, embora a presença militar dos EUA na região desempenhe um papel de estabilização, o comportamento errático e por vezes contraditório de Washington tem precisamente o efeito contrário.
Entretanto, uma coisa é clara. A economia dos Estados Unidos está tão fortemente emaranhada com a da Asia que qualquer tentativa de excluí-los, seja econômica ou militarmente, constituiria o equivalente a um ato de guerra. Seria igualmente irresponsável, contraproducente e perigoso se os EUA usassem o Nafta –o Acordo Norte-Americano de Livre-Comércio– para impedir a entrada da Asia nos mercados do hemisfério ocidental e, do mesmo modo, qualquer tentativa séria da Asia no sentido de manter a América de fora poderia constituir o equivalente a um ato de guerra. A tentativa de dividir o Pacífico ao meio devastaria as economias e alimentaria paixões políticas de ambos os lados.
Qualquer política de Asia - para - os - asiáticos, caso implementada, facilitaria a entrega das menores nações asiáticas nas mãos de um dos grandes poderes. As consequências políticas para todos os envolvidos seriam catastróficas, mas as consequências militares seriam ainda piores. Em termos de "realpolitik", já há meio século que os Estados Unidos não fornecem a força militar predominante no Pacífico –uma força cuja presença normalmente estabilizadora era bem recebida por várias nações asiáticas– para se deixarem ser excluídos de uma economia que ajudaram a criar. A ascensão da Asia não teria ocorrido sem essa estabilidade regional.
Teria sido um terrível equívoco se os chauvinistas asiáticos engolissem sem criticar a tese da "América em declínio". A agoniasde que padecem os Estados Unidos não é o resultado de seu declínio, mas de seu papel revolucionário no mundo.
Os Estados Unidos representam a frente da Terceira Onda. Os problemas domésticos americanos originam-se principalmente do colapso das instituições da Segunda Onda, das empresas fabris aos sistemas urbanos. As novas instituições da Terceira Onda ainda não foram inventadas para substituí-las. Mas também a Asia enfrenta a obsolescência de muitas de suas instituições e sistemas, à medida que a economia se movimenta além da exportação de produtos agrícolas, matérias-primas e mão-de-obra barata. Não é a América que está em "declínio", mas o tradicional industrialismo da Segunda Onda.
A América ainda estará exportando empregos de fábricas baseados na força muscular para a Asia, México e outros lugares. Mas ela está destinada a conquistar os empregos da Terceira Onda. Apesar de tudo, nenhum país no mundo, inclusive Japão, pode rivalizar com a ampla base científica e tecnológica da América, sua capacidade de inovação e seu impetuoso espírito empreendedor. São, de fato, a produção e distribuição de informações, softwares, imagens, idéias, cultura e cultura popular que escoram cada vez mais o seu poder econômico e militar. Tanto na economia como na guerra, a América possui a chave do poder no mundo do amanhã: a info-superioridade.
Destino do Pacífico
O que mesmo este estudo superficial revela é a ingenuidade das projeções simplistas, que descrevem o destino do Pacífico Asiático como uma extensão do presente –só que mais rico.
As décadas futuras são plenas de esperança. A ascensão da Asia poderia ajudar a retirar da pobreza mais de 1 bilhão de pessoas. Isso não acontecerá somente se os políticos, concentrando-se na economia de curto prazo, ignorarem as realidades políticas, culturais, militares e tecnológicas. Certamente haverá surpresas, boas ou más, que derrubarão todos os nossos presentes cálculos.
Entre agora e 2020, é provável uma série de inovações em todas as tecnologias, desde a computação ótica até a bioengenharia, desde a supercondutividade e o poder da fusão até a medicina e ciência dos materiais. Algumas, como aquelas referentes à energia, poderiam rearranjar radicalmente o panorama geopolítico e econômico do planeta.
Outros "curingas" serão negociados com os jogadores da região; desastres ecológicos, migrações em massa e mudanças demográficas, para não mencionar a ascensão de uma nova classe média e uma nova geração menos acostumada ao trabalho árduo, menos disposta a se sacrificar pelo Estado, menos familiarizada com os horrores da Segunda Guerra Mundial e Vietnã e, portanto, potencialmente aventureira.
Uma nova mídia inundará a região com uma fantástica torrente inesgotável de mensagens comerciais, culturais, políticas ou religiosas. Por todas essas razões, o Pacífico Asiático de amanhã já não se parecerá com a imagem que nossa própria geração tem dele.
Finalmente, mudanças frequentes e erráticas na estrutura do poder, tanto na região como nas suas relações com o restante do mundo, irão gerar flutuações e instabilidades ainda mais perigosas.
Historicamente, quando surge um poder novo e muito grande, ele exige um assento na mesa das nações e uma rápida redistribuição dos privilégios do poder. Sua autoconfiança e arrogância colidem com os arraigados interesses e atitudes dos centros de poder mais antigos. O risco de tais colisões crescem rapidamente se a transição for brusca. A própria velocidade do crescimento da China, por exemplo, caso se mantivesse, daria menos tempo ao Japão, Estados Unidos e India de se adaptarem às novas realidades.
De fato, um estudo esclarecedor das guerras passadas que envolveram grandes potências como os Estados Unidos, a URSS, França, Alemanha, Grã-Bretanha e Japão em variadas épocas, desde 1860 até 1975, conclui que "o problema fundamental que leva todo o sistema a escorregar inexoravelmente rumo à guerra são as diferenças nos ritmos de crescimento entre as grandes potências", permitindo que um desafiante domine uma antiga grande potência. "São esses saltos que desestabilizam o sistema". O futuro da região do Pacífico Asiático guarda um período de "múltiplos saltos" –e, portanto, um período de transtornos e convulsões.
O mundo do Pacífico Asiático está entrando na "era da instabilidade".

ALVIN E HEIDI TOFFLER são co-autores de várias obras sobre tendências e transformações econômicas e políticas, como "O Choque do Futuro" (1970), "A Terceira Onda" (1980) e "Powershift" (Mudança de Poder, 1990).

Tradução Vera de Paula Assis

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