São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Brincar de Deus em um laboratório

VINICIUS TORRES FREIRE
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos tempos bíblicos, uma espécie de filho de mãe de aluguel, rejeitado, foi banido para o deserto e sobreviveu apenas pela graça de Deus. Sara, a mulher até então estéril de Abraão, deixou que este tivesse um filho com sua ascrava Agar –Ismael. Deus permitiu depois que Sara, aos 99 anos, tivesse um filho seu –Isaac. Enciumada, fez com que sua escrava e Ismael fossem expulsos da casa do patriarca dos judeus.
Em meados dos anos 80, durante o boom dos úteros emprestados, uma criança americana nascida com graves problemas cerebrais, quase um vegetal, foi recusada pelos pais "oficiais" e pela mulher que a gerou. Acabou em uma instituição para crianças abandonadas. A medicina do ano 2000, no entanto, deixa prever que casos como o bebê de aluguel sem cérebro ou quadrigêmeos gerados –propositalmente– por inseminação artificial e nascidos preamaturos e deficientes vão deixar de parecer casos graves da polêmica sobre a manipulação da reprodução.
Estes exemplos, de fácil apelo sentimental, provavelmente logo descerão para os rodapés da disputa ética sobre os limites e consequências da interferência científica na até há pouco natural geração de seres humanos. Palavras estranhas ao universo da maternidade, como mercado negro de terapias gênicas e polícia genética, podem dar idéia das possibilidades de horror na prática do que assepticamente é hoje chamado de "reprodução assistida".
Ou talvez não. O que parece terror de ficção científica hoje pode perfeitamente ganhar lugar na clínica da esquina, amanhã. Uma rápida revisão da repercussão e das resistências causadas pelo avanço da manipulação de óvulos, espermatozóides e embriões mostra uma série de equívocos de avaliação científica e polêmicas fúteis ou tornadas obsoletas pelo próprio avanço da pesquisa. Isto é, a convivência com o que num momento é considerado sacrilégio e atentado à dignidade humana faz caducar –agora não vem ao caso se justamente ou não– algumas das restrições à intervenção "contra naturam" no nascimento humano.
Em 1970, quando começaram a ser divulgadas as primeiras experiências de fertilização "in vitro" para posterior implantação do embrião no útero –em suma, do bebê de proveta–, médicos, teólogos, filósofos e a mídia deram um show de interpretações que hoje parecem, no mínimo, exóticas. Médicos catedráticos das melhores universidades inglesas, francesas e brasileiras diziam que o método era impraticável e, se possível, geraria monstruosidades cromossômicas. Dizia-se também que o método serviria para ditadores criarem exércitos de filhos de proveta, que chegáramos ao "admirável" mundo novo de Aldous Huxley e que o amor, "traço fundamental do homem", seria extinto.
Em 1961, padres dominicanos e jesuítas debatiam se a inseminação artifical por esperma que não fosse o do marido era adultério ou não. Naquele ano, uma italiana separada do marido –não havia divórcio– fora condenada por este crime. Quando pesquisadores italianos mantiveram, pela primeira vez, um embrião fecundado artificalmente numa proveta, o romancista, médico e membro da Academia Francesa George Duhamel disse que o experimento "não passa de uma curiosidade científica", mas afirmava temer pelo "futuro humano se os bebês pudessem ser gerados por esse meio". A Igreja Católica disse que a experiência era "monstruosa" e "sacrílega". Ainda em 1973, a justiça do Estado americano de Nova York debatia se um filho gerado por inseminação artificial era legítimo ou não. Pensões e heranças geraram várias disputas desse tipo.
Hoje existem bancos de embriões congelados, cerca de 3.000 em todo o mundo, células humanas são cruzadas com as de animais e tecidos celulares de quase fetos são utilizados em pesquisas veterinárias. Quase não se presta atenção aos bebês de proveta –o primeiro causou escândalo em 1978 (é possível que tenham nascido outros no começo da década de 70). No entanto, a multiplicação de plurigêmeos artificiais tem aumentado o número de bebês nascidos prematuros e com graves problemas de saúde. Mulheres pós-menapausa podem ter filhos, mas os danos para sua saúde e para as das crianças ainda não são completamente conhecidos –sabe-se que elas ficam mais predispostas ao câncer.
Mas hoje esses problemas são tidos como "colaterais" e não comoveria a opinião pública uma campanha contra a procriação semi-artificial. E, provavelmente, não seja possível controlar o avanço das técnicas de interferência na reprodução e mesmo de constituição dos seres humanos. O pesquisador francês Jacques Testart, um dos maiores especialistas franceses em "reprodução assistida", parou voluntariamente de "inventar" e pediu uma moratória nas pesquisas na área. "Não há ciência neutra. Não é possível controlar o desejo de aplicar uma técnica já desenvolvida e os avanços da genética e da reprodução artificial podem levar à eugenia", disse Testart.
Um médico brasileiro especialista em fertilização artificial e ex-aluno dos pioneiros da terapia gênica nos EUA diz que a solução é cortar as verbas para a pesquisa. Segundo o especialista, não será possível controlar o uso das técnicas de exame de doenças genéticas em embriões de poucos dias e, no futuro, da alteração de características hereditárias. Os fetos de "má qualidade" ou "fora do padrão" seriam descartados ou "aperfeiçoados". Ou seja, a confluência da possibilidade de fertilização fora do útero com a da manipulação genética, que começa a se tornar viável, pode colocar um dilema radical.
Ou se pára a ciência ou os códigos de bioética precisarão do auxílio da polícia com especialistas em genética para controlar um ainda futurístico mercado negro da eugenia. Ou então a maleabilidade cultural humana vai tolerar a intervenção nas características humanas ou, pelo menos, um "controle de qualidade" dos bebês, o que de certa forma hoje já é feito com exames no líquido amniótico. Como já aconteceu com a inseminação artificial e com os bebês de proveta.

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