São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Cardeal condena criação de 'população fantasma'

FRANCK NOUCHI e HENRI TINCQ

FRANCK NOUCHI; HENRI TINCQ
DO "LE MONDE"

Em meio à votação na França de três projetos de lei sobre bioética, o acerbispo de Paris, cardeal Jean-Marie Lustiger, enfatiza as preocupações da Igreja Católica quanto às atividades que envolvem manipulação da vida humana. A seguir trechos da entrevista:
Pergunta - Qual sua opinião sobre os projetos de lei relativos à bioética?
Cardeal Lustiger - É manifesta a intenção de tratar a totalidade das questões jurídicas, legais morais e científicas colocadas pelo desenvolvimento da medicina e da biologia. Com isso, os projetos condenaram-se a entrar em várias contradições insuperáveis. Por exemplo, nos projetos adotados pela Assembléia Nacional em 1992, o legislador passou por cima de graves objeções éticas. Ora, uma lei desse gênero deve ser fruto de um consenso. A lei não pode violentar a posição moral de uma parte dos cidadãos.
Pergunta - O senhor teme que se chegue ao ponto de questionar o próprio estatuto do casamento e rever as regras relativas a filiação e à adoção?
Lustiger - Regulamentar por este viés questões tão graves, que merecem ser debatidas por si próprias, não constitui um bom procedimento jurídico.
Assim, o casal candidato a uma "Fivete" (fecundação "in vitro" e transferência do embrião) e à doação de um embrião deveria se apresentar e oficializar seu projeto de paternidade diante de um magistrado. A intenção de rigor pode ser compreensível, mas isso nada mais é do que instituir um casamento e uma filiação de um segundo tipo, um novo estatuto legal do casal não casado.
Através de uma lei sobre a bioética são introduzidas outras normas, outros critérios que afetam o próprio equilíbrio da sociedade. Será que é satisfatório e aconselhável tratar desse modo, falando-se de situações excepcionais, questões tão complexas quanto o estatuto do casal, o casamento, a filiação, a paternidade, em relação às quais o código civil é formal e explícito?
Há na França uma população fantasma de milhares de embriões congelados. As cifras nos permitem pressentir a tentação de usar como "material humano" esses embriões às vezes anônimos.
Pergunta - Como a Fivete pode evitar a criação de um banco de embriões?
Lustiger - Do ponto de vista da Igreja Católica, a reprodução assistida suscita objeções morais insuperáveis. Entretanto, uma exigência moral nem sempre pode ser imposta pela lei. Esta pode tolerar sem fazer um julgamento de legitimidade moral. Mas a exitência de bancos de embriões humanos conduz inexoravelmente a experiências, manipulações e desvios eugênicos.
Pergunta - O que se deve fazer com os milhares de embriões congelados?
Lustiger - Eu faria uma analogia com a situação encontrada no final da vida. Não somos obrigados a empregar métodos extraordinários e desproporcionais para assegurar a sobrevivência de um ser humano. Do mesmo modo, os embriões não são viáveis a não ser por meios extraordinários de implantação, exorbitantes e suspeitos. Pode-se então avaliar que não existe erro moral em se interromper seu congelamento.
Repito que essa fabricação de embriões é não apenas absurda, mas também trágica para o futuro de nossa civilização. Fico assombrado com o montante de dinheiro dedicado a se produzir crianças nessas condições, enquanto se deixar morrer de fome milhares de crianças no resto do mundo.
Pergunta - O senhor é favorável ao princípio do anonimato do doador?
Lustiger - Compreendo as razões expostas a favor do anonimato. Mas será que se pode privar irrevogavelmente um ser humano da possibilidade de saber de onde ele vem? Sobre esse ponto, não se levou em conta as opiniões dos psicólogos e dos psicanalistas. Repito: Será que é um progresso para a humanidade oferecer aos paises ricos tais próteses para a esterilidade, em lugar de curá-la?
Pergunta - No que diz respeito à prevenção da transmissão de certas doenças hereditárias muito graves, o que o senhor acha da discussão sobre o diagnóstico pré-fertilização?
Lustiger - O eugenismo não é apenas racial. Ele pode consistir em querer produzir esse ou aquele tipo de ser humano ou excluir outros seres humanos do banquete da vida. O eugenismo não estará evidente aqui?
Pergunta - Mas essa técnica evita o recurso a interrupção terapêutica da gravidez...
Lustiger - Não se deve ceder em questões de princípios. Pois o diagnóstico pré-fertilização já é uma prática eugênica. Através dessa lei, tomemos cuidado para não comprometermos o equilíbrio jurídico e moral de nossa vida social. É preciso evitar destinar seres humanos à morte.
Tradução de Clara Allain

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