São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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O jornal e seu papel

MARCELO LEITE

Para muita gente, em especial milhares de assinantes particularmente azarados da Folha, parecia que o mundo ia acabar. Era como se o Sol não tivesse aparecido, naquela manhã, ou quem sabe os cachorros desaprendido a latir: o jornal não estava na porta.
O desastre aconteceu no último domingo, 9 de outubro, uma data só comparável em importância ao 14 de agosto em que a Folha superou a marca de 1 milhão de exemplares. Desse episódio há muitas lições a tirar, sobretudo em relação à febre dos fascículos que acomete a imprensa brasileira. E quero já adiantar –antes de historiar alguns fatos que podem não ser do conhecimento geral– que o juízo dos leitores é devastador.
Não se concebe tragédia maior para um periódico do que deixar de circular, ainda que parcialmente. Foi o que aconteceu com 111.100 exemplares destinados a bancas do interior de São Paulo, distribuídos –pasme– sem o primeiro caderno. Isso mesmo, sem a primeira página, sem editoriais, sem expediente. Outros 237.700 saíram sem os cadernos Cotidiano e Finanças.
O resultado dessa falha inacreditável não poderia ter sido outro. Em dois dias, os telefones do jornal receberam mais de 7.000 chamadas de leitores indignados, ressentidos, decepcionados. Sentiam-se traídos em algo básico, a certeza de poder contar com o jornal preferido –e, no caso dos assinantes, pago com antecedência.
Entornado o caldo, a Folha fez o que pôde. Ao mesmo tempo em que enxugava o espaço editorial (notícias e tudo o que não é publicidade) até o ponto de quase desfigurar as edições ao longo da semana, a Redação tomou a única atitude cabível no caso: tornar públicas as próprias dificuldades (nos dias que se seguiram, jornais como ``O Globo", ``Gazeta Mercantil" e ``O Dia" também trataram da questão).
Em cinco reportagens extensas, publicadas na segunda, terça, quinta e sexta-feiras e ontem, a Folha escancarou a origem de suas agruras. O maior jornal do país quase parou, atrasando em 11 horas a impressão de mais uma ``edição histórica", por uma razão para lá de prosaica: falta de papel.
Muitos leitores que ligaram para o ombudsman não se deram por satisfeitos com as explicações publicadas –resumidamente, a combinação de escassez de papel de imprensa no mercado mundial, atrasos na chegada de navios com papel importado e não-cumprimento pelas Indústrias Klabin de Papel e Celulose da entrega de cotas contratadas em julho.
Segundo a direção da Empresa Folha da Manhã S/A, que edita a Folha, compromissos assumidos por escrito pela Klabin exigiriam a entrega de no mínimo 204 toneladas por dia, este mês. Até o último dia 9, a média diária estava em 130 toneladas. O consumo total da Folha em outubro era projetado para 12.831 toneladas, mas deverá ficar em 10.800.
Com a veemência previsível do consumidor que se acredita ludibriado, os leitores cobravam duas definições: quais providências seriam tomadas, e quando. Outros, ultrapassando a fronteira da simples decepção, lançavam a suspeita de uma grave falta de planejamento, de organização ou até de responsabilidade empresarial.
Quanto às definições, o leitor teve de esperar até sexta-feira para obtê-las. Era o mínimo a fazer, um imperativo apontado mais de uma vez, durante a semana, na crítica interna da edição feita diariamente pelo ombudsman. Foi, assim, só na sexta que o leitor ficou sabendo que a regularização do fornecimento deve ocorrer até o final deste mês.
Sobre as providências, o esclarecimento veio apenas na edição de ontem. Na realidade, são medidas mais para minorar os efeitos do fato consumado do que para revertê-lo: um remanejamento e enxugamento geral de colunas e seções fixas, com o propósito de liberar 15% do espaço disponível para notícias propriamente ditas.
``Nosso objetivo é tentar dar a volta por cima, fazer um produto melhor em um espaço menor", diz Eleonora de Lucena, secretária de Redação encarregada da área de Edição (e, portanto, da administração do espaço editorial).
As suspeitas de alguns leitores, sobretudo a alegada falha estratégica de se lançar na rota de um aumento estrondoso das tiragens em meio a uma crise no mercado de papel, são rebatidas pelo diretor-presidente da Empresa Folha da Manhã S/A, Luís Frias. Ele argumenta que, não fossem as falhas na entrega e o atraso dos navios, a Folha chegaria ao final deste mês com mais de 18 mil toneladas de papel em estoque. ``Ninguém aqui se esqueceu de comprar o almoço de amanhã", afirma.
Como a Klabin aceitou engordar suas entregas à Folha até o patamar de 350 toneladas diárias, tudo indica que o pior já passou. Dentro de oito dias, o espaço de redação deve voltar ao normal.
Hoje mesmo você tem em mãos um jornal comparável aos dos últimos domingos: 242 páginas, na edição São Paulo (aí incluídas 80 da Revista da Folha); na semana passada, foram 250 páginas. E com um novo recorde de tiragem, 1.460.240 exemplares.
Agora, às lições:
1. O transtorno causado ao leitor por esse curto-circuito administrativo-comercial é irreparável, mas muito mais grave é o dano em sua confiança na Folha.
Para reconquistar a parcela perdida será necessário muito mais tempo do que se consumiu em permitir que fosse desfalcada. O leitor, em particular o assinante, tem consciência clara de que é o jornal –e não uma indústria de papel ou um capitão de navio– que tem compromisso com ele.
2. As perdas não se resumem aos exemplares não-entregues ou mutilados. Como a própria Folha noticiou, deixaram de ser publicados quatro cadernos especiais. Entre eles, um sobre a Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, para revolta de muitos paulistanos. Nestes casos, Inês é morta.
3. Boa parte dos leitores dirige sua frustração e mágoa contra os fascículos, como o Atlas e agora o dicionário ``Aurélio" (cuja circulação em bancas foi adiada para dia 24). Identificam-nos como os responsáveis diretos pelos transtornos, já que sem eles não haveria o brutal aumento das tiragens.
O raciocínio é impecável. Resumindo, o recado insistente dos leitores é que eles querem antes de mais nada um bom jornal. Se vier com fascículos, ótimo. Mas se os fascículos resultarem em um jornal ruim, passarão a odiá-los.
Estão cobertos de razão.
Escrevi esta coluna com cerca de 80% de seu tamanho normal. É a minha maneira de contribuir, voluntariamente, para que o jornal leve ao leitor um pouco mais de notícias –que são, afinal, o que realmente interessa.
Fui informado pela Direção de Redação de que os jornalistas Élvis Bonassa e Daniela Pinheiro reivindicaram espaço fora desta coluna para prosseguir com nossa polêmica sobre o caderno Olho no Voto (o texto deve estar publicado nesta mesma página).
Lerei com atenção os novos argumentos. Aviso, no entanto, que só pretendo responder se representarem de fato uma oportunidade de contribuir para que se faça um caderno melhor, na próxima eleição.

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