São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Não repara, não

RICARDO SEMLER

Sydney, Austrália – São trinta e cacetada horas de vôo até aqui, mas o urubu Ricardinho (que voou de Varig, como de hábito) ainda se surpreendeu com as similaridades entre os dois países.
Afinal, aqui há um complexo parecido com o brasileiro. Mal se está a caminho do hotel e os anfitriões já querem saber o que se achou do país deles. Complexo do mesmo tipo que nós temos quando pedimos às visitas que não reparem na bagunça.
Aqui também grassa a dor de cotovelo segundo a qual o primeiro mundo deveria dar mais atenção a países longínquos. Assim, fala-se adoidado de assuntos que têm importância apenas local. Como o festival de cinema de Alice Springs, que vale por um Gramado nosso, e é quase tão desconhecido.
O cinema aqui, porém, não se compara, e crava sucessos internacionais regularmente. Filmam desde leves e divertidos Priscilla, Rainha do Deserto e O Casamento do Muriel, até barras pesadas impressionantes como Bad Boy Bubby, uma película difícil de esquecer.
Como nós, que assumimos o Babenco como nosso, apesar de ser argentino, aqui também fica o crédito por filmes como O Piano, que é neo-zelandês.
Em Adelaide montam um Festival de Artes que é como a nossa Bienal. Jorram páginas de jornal, especiais de TV e oba-oba regional, mas ninguém no mundo toma conhecimento.
Claro que há artistas de grande talento, como nós, também, temos de sobra. Mas há o mesmo mau hábito de enganar o público, com ufanismo e marketing de jardins, que vem a pensar que o mundo inteiro está de olho.
Falamos bobagens com respeito à Bienal do Ibirapuera, que só tem alguma, e pouca, importância para a arte brasileira, e que traz algumas gracinhas e muito anacronismo de fora como complemento, mas não faz parte nem dos cinquenta eventos mais importantes do mundo da arte deste ano de 1994.
Fica como a Feira de Frankfurt, aonde o Brasil tanto se vangloriou de ser o tema do ano, só para descobrir o óbvio: que o ``New York Times" e tantos outros jornais disseram que ``falando com as centenas de editores americanos na feira, ninguém saberia que o Brasil estava sendo homenageado".
E disse um editor de primeiro time: ``Sinto dizer que nós não damos a mínima bola para o Brasil".
Isto tudo não diminui o Brasil nem a Austrália, contanto que reconheçamos que nosso talento não está sujeito à aprovação externa. É essa gana assanhada por um elogiozinho do primeiro mundo que nos confina ao terceiro.
Queremos que nosso festival de cinema, nossa aparição em Frankfurt e nossa Bienalzinha sejam reconhecidas como patrimônios da humanidade.
Citamos, portanto, publicações brasilófilas, artiguinhos de pé de página e críticos estrangeiros que adoram umas feriazinhas na Bahia como prova de nossa importância no mundo. E isto só serve para atrasar o país, que não se desenvolve, obstaculado por essa auto-enganação.
Temos grandes artistas, potenciais cineastas e autores em desenvolvimento, como tem a Austrália. Porém, fazer de conta que alguém de primeiro time dá a mínima bola para estes micro-eventos que promovemos, dentro de nossas parcas possibilidades, é derrotismo, já que tapa o sol com a peneira.
Precisamos erguer a cabeça com talento real, como na nossa genial música popular, e deixar de lado os marqueteiros, puxa-sacos e empresários das artes que querem que acreditemos que o Brasil está abafando, só porque faz bem para eles. Não reparem não, tá?

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