São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Sensação contraditória de vitória e derrota

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Terminei a semana das eleições com sensações contraditórias de derrota e vitória. A pergunta clássica sobre as sociedades contemporâneas heterogêneas ainda martela minha cabeça. Afinal, quem somos nós?
O distanciamento emocional é impossível, mas a ``razão crítica" continua funcionando com toda a força. Os fatos são passíveis de muitas leituras, mas algumas são inescapáveis e trazem nelas possibilidades de futuro.
O fato mais ostensivo destas eleições foi a derrota de Lula e a vitória de FHC.
Uma primeira leitura mostra que Lula foi derrotado porque aumentou muito o seu índice de rejeição, baseado em preconceitos destilados pela mídia e induzidos por uma cultura de ``senhoritos" e de colonizados mentais.
Por sua vez, a vitória de FHC teve todos os apoios, legítimos e até alguns ilegítimos. Foi louvada em prosa (propaganda) e verso (mercadológico) pela grande imprensa conservadora, tendo até direito a ``árvore genealógica", publicada num caderno de um dos grandes jornais do Rio de Janeiro. Supostamente, governará com a maioria esmagadora dos poderes (econômico, político e cultural) e o apoio da opinião pública. Será tão simples? Por quanto tempo?
Uma segunda leitura indica outras coisas. Lula teve 28% dos votos e a esquerda ``sozinha na estrada" é a mais forte da América Latina e do mundo ``ocidental e cristão".
Por outro lado, as alianças de FHC e a ideologia expressa em seu projeto de governo são incompatíveis, mas ninguém discutiu seriamente qualquer projeto de governo, nem as reais condições de governabilidade. Esta última, ora supõe uma Presidência imperial (sobre um Estado devastado?), ora um esquema de alianças precário e insuficiente que torna a hegemonia política do presidente eleito e de seu partido teóricamente inviáveis.
A maioria da Câmara continuará com o PMDB e o PFL, partidos regionalizados e sem lideranças nacionais capazes de ser unjidas pelas urnas na disputa presidencial. Eles representam mais um estilhaçamento da nação e dos interesses do que qualquer ``consenso" em torno de um projeto de Estado ou de sociedade futura, como se viu na malograda ``revisão constitucional".
Assim, qualquer que seja a leitura possível, a ambiguidade tanto da derrota como da vitória são inescapáveis.
Um segundo fato, evidente, mas pouco comentado, foi que a heterogeneidade das condições regionais, sociais e culturais produziu efeitos cruzados inesperados e alianças locais impossíveis de extrapolar à escala nacional. Os resultados mais amargos foram desde um grande número de abstenções e votos nulos e brancos até o surgimento de novos personagens políticos patológicos. Ambos os fenômenos ocorreram sobretudo nas grandes metrópoles.
Uma primeira leitura, de natureza estrutural, indicaria que o Brasil nunca será uma sociedade politicamente democrática enquanto suas imensas massas pobres não forem mais escolarizadas e socialmente mais homogêneas. Sim, mas e qual é a ponte entre a situação estrutural e o quadro eleitoral?
Uma segunda leitura mais atenta da representação política mostra que não houve correlação clara entre condições econômicas e sociais e o caráter ético, político e ideológico da representação popular.
Por outro lado, os fenômenos patológicos não se prendem à sociedade pobre, mas sobretudo a segmentos da classe média urbana que só o olho atravessado de Nelson Rodrigues poderia descrever com precisão. Este é o ponto mais delicado e mais difícil de decifrar das vitórias e derrotas.
Aparentemente, a situação de classe, sexo, raça e idade da população, tão explorada nas pesquisas de opinião nos Estados Unidos (de quem copiamos toda a parafernália), não é explicativa dos resultados eleitorais. O poder econômico, político e cultural das elites explica muita coisa nesta eleição casada, exceto o fato de que ela não foi ``casada" em nenhum sentido social mais profundo.
Até prova em contrário, as bases teóricas de interpretação possível das nossas vitórias e derrotas políticas não podem ser fundadas nos grandes clássicos, Marx, Tocqueville e Weber, senão numa referência estrutural muito ampla.
Os dois candidatos mais importantes à Presidência da República são em si mesmos personagens peculiares na história política brasileira. A exploração simbólica das suas biografias se deu num nível aparentemente civilizado, mas profundamente mistificador.
Para um analista habituado a ler por baixo da superfície é fácil entender a conjuntura favorável (econômica e política, nacional e internacional) que deu a vitória a FHC. O que não é fácil de entender é porque a direita brasileira, pela segunda vez, teve de investir num personagem que não a representa cabalmente e as razões simbólicas que levam a que nenhuma figura politicamente relevante se reconheça como conservadora e de direita, com raras e (des)honrosas exceções.
Só os humoristas e caricaturistas deste país parecem ser capazes de exprimir a imensa mistificação que significa converter interesses legítimos das classes dominantes em imagens de propaganda de supostos ideais de equilíbrio e maturidade inteiramente fora de lugar.
Esperemos que a nossa versão ``pós-moderna" da ``ordem e progresso" não se converta mais uma vez num pesadelo movido a Kafka, droga e ``Consenso de Washington". A mistura pode ser extremamente dissolvente do que resta desta nova tentativa de ``modernização conservadora".
A minha própria eleição é um desafio às visões convencionais. Aparentemente, não fui eleita apenas por uma minoria de esquerda intelectualizada e seus familiares, mas pelo que represento simbolicamente para uma população mais ampla que inclui desvalidos e indignados de várias classes sociais.
Honradez e desassombro são características da minha biografia que encontra eco na indignação de uma parcela da população do Rio de Janeiro. Mas a elas responde também, de forma compensatória, a consciência culpada de certas ``elites modernas" que queriam votar num projeto liberal-conservador, mas com um espécie de ``fiscal garantido".
As minhas imagens na mídia: em particular as lágrimas do Plano Cruzado e a minha personagem da ``Escolinha do Professor Raimundo" também parecem ter contribuído de forma ambígua para minha eleição.
Ninguém tem muito claro (nem eu) o efeito dessas imagens na ``amplitude" da minha representação popular. Assim, no exercício do meu mandato não me deixarei levar pelas ``imagens", mas pela convicção profunda de que a ética na política se pratica tendo, mais do que uma história de vida, um projeto e um enquadramento político-partidário capazes de dar sustentação a uma biografia.
Felizmente para mim e para os meus representados, tive o cuidado de escolher bem. Estou e sou o PT. Escolhi e fui escolhida e, apesar de que muitos dos que votaram em mim não simpatizam com o meu partido, a única garantia real que eles têm de que não trairei a representação que me deram é justamente por estar no PT.
Não apenas, como dizem os nossos slogans, porque ``o PT não tem ladrão", mas sobretudo porque ele se compõe de uma parcela ética de três mundos que me proponho representar: o mundo das ``contra-elites" (consciência crítica), o do trabalho (consciência de organização e luta) e o terceiro mundo (a luta pela sobrevivência e o desejo de justiça social).
É o desejo profundo e a vontade política de unir esses três mundos e construir uma nação onde todos caibam como cidadãos que me anima e aos meus companheiros de partido. Nele temos representantes ilustres dos três mundos. Eu, apesar de pertencer ao ``primeiro", não me sinto melhor nem mais preparada que os demais.
É evidente que, apesar de Mercadante e eu sermos mais próximos socialmente, nossa admiração por Lula e Benedita não é à toa e reflete o peso indiscutível e a qualidade excepcional das lideranças originadas no segundo e no terceiro mundos dentro do PT.
A nação, convém lembrar, não é apenas injusta, nem o país está perto da maturidade, como sustentou o candidato vencedor. O futuro democrático do Brasil depende da capacidade que os representantes desses três mundos tenham de desfazer o nó do subdesenvolvimento e liderar a luta pela justiça social e pela ética política.
É nesta luta que estou engajada desde jovem e agora mais do que nunca me sinto em casa e posso considerar-me apenas um pequeno ponto de representação desta imensa rede de solidariedade social e nacional que, embora maior que o PT, passa necessariamente por ele.

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