São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Debate sobre bioética deve abranger efeito da miséria

ELIANE S.AZEVÊDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas últimas três décadas, o conjunto de idéias que constitui a bioética está imprimindo mudanças em diversos setores da sociedade de Primeiro Mundo.
Chamo de sociedade de Primeiro Mundo aquela que, mesmo compondo os povos de países pobres, vive em nível de Primeiro Mundo.
Ainda que não seja oportuno, neste artigo, buscar entender as origens da bioética e seu estabelecimento nesta segunda metade do século 20, torna-se quase impossível não relembrar que a história da humanidade é marcada por buscas de princípios que preservem os direitos da pessoa, que enalteçam a sua dignidade e que façam com que cada um seja respeitado nos verdadeiros limites de sua cidadania, pelo fato de ser uma pessoa.
Essa busca nasce não apenas de inspiração religiosa mas também de lutas e movimentos organizados em defesa dos direitos humanos. Com exceção de um pequeno percentual (3% de todos os nascidos vivos), a grande maioria das pessoas nasce com todo o potencial genético para desenvolver-se plenamente do ponto de vista físico e mental. Todavia, o potencial genético perde a capacidade de atuação se não encontra a contribuição de seu parceiro, o ambiente, no processo de desenvolvimento das pessoas.
Para que a programação genética de qualquer um se manifeste em sua plenitude, é necessário que o ambiente viabilize essa manifestação. Por exemplo, os genes que coordenam um desenvolvimento normal e sadio de qualquer criança jamais poderão oferecer a essa criança uma vida sadia se o ambiente no qual ela se desenvolve a agride pela desnutrição, pela exposição a infecções, pela insalubridade geral dos ambientes de pobreza intolerável pelo organismo humano.
A parceria genético-ambiental no desenvolvimento das pessoas é semelhante a parceria genético-ambiental observada nas sementes. A informação genética, que dará origem à planta, está presente na semente, mas, se a semente é lançada em terreno insalubre, sem nutrientes e sem irrigação, torna-se impedida de cumprir sua missão biológica, isso é, não consegue diferenciar-se e desenvolver-se, ficando aquém da planta que deveria ser.
Exatamente o mesmo ocorre com as pessoas e seus ecossistemas. A criança que nasce em condições de pobreza, que enfrenta a desnutrição desde o início da vida, que é continuamente exposta a infecções devidas às más condições do ambiente, perde a capacidade de desenvolvimento do potencial genético que traz consigo. E à semelhança da semente em terreno insalubre, essa criança, se não morre durante a infância, desenvolve-se com as marcas indeléveis da pobreza que a subnutriu, prejudicando sua vida para sempre.
A criança cuja vida é assim quase não tem identidade de pessoa, nem na sua auto-imagem nem na imagem que os outros fazem dela mesmo depois de adulta. O seu potencial genético foi inibido pelo ambiente e a sua pessoa ficou a meio caminho do próprio eu.
Como podem os princípios fundamentais da bioética em saúde serem aplicados a pessoas assim? A elegante elaboração teórica desses princípios no Primeiro Mundo ecoa distante da realidade daqueles que nem sequer têm noção de mundo.
Não questionamos a grandeza do princípio da autonomia, da integridade, da beneficência e da justiça. O que inquieta é como dizer a essas pessoas que a época do autoritarismo médico já passou e, atualmente, o que é respeitado acima de tudo é a autonomia do paciente.
Faz parte da dignidade das pessoas administrar a sua vida na saúde, na doença e mesmo na morte, e a intervenção do médico tem seus limites no limite da integridade do ser humano. Qualquer pessoa em pleno conhecimento de sua doença, das consequências da mesma, do tipo de tratamento imposto e das consequências do mesmo decide se aceita ou não esse ou aquele tratamento apresentado.
Como levar a idéia de autonomia e de integridade a quem nunca teve a oportunidade de sentir-se um ser com autonomia para administrar sequer sua própria fome? Qualquer pessoa cujo corpo não conseguiu desenvolver-se para até mesmo saber qual o potencial genético que trouxe consigo já deve ter violentado o que deveria existir de mais fundamental em bioética, ou seja, o direito de vir a ser. É constrangedor falar em integridade de um corpo a um corpo cuja desnutrição e doenças da pobreza já desrespeitaram sua dignidade ao extremo de impedir-lhes ser o seu ser.
Terá sentido o discurso do princípio da beneficência para quem se beneficia de nada? É, de certa forma, confortante saber que todo ato médico deve resultar em alguma forma de benefício para o paciente. Mas, se o paciente nem sequer consegue ver um médico, dialogar com um médico, como trazer para o dia a dia dele a proteção pelo princípio da beneficência?
Qualquer país que respeita seu próprio povo o faz através do princípio de justiça: todos devem ter igual acesso aos benefícios da medicina. Os recursos para a saúde devem ser distribuídos pelo critério da justiça a fim de que uns não sejam mais beneficiados que outros. No Brasil, e na própria América Latina, não seria o clamor por justiça presente na vida de milhões de injustiçados sociais mais convincente que as formulações teóricas da bioética?
Finalmente, que o 2º Congresso Mundial de Bioética que ocorrerá em Buenos Aires, Argentina, nos dias 24 a 26 de outubro próximo, também contemple uma bioética da pobreza em suas discussões.

ELIANE S. AZEVÊDO, médica, é doutora em genética, pesquisadora do CNPq e ex-reitora da UFBA (Universidade Federal da Bahia)

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