São Paulo, domingo, 16 de outubro de 1994
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Um raio que nos parta

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não é de hoje que existem cidades malditas. Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo Senhor –que em sua divina cólera poupou apenas um justo mas não sua mulher, que olhou para trás e foi transformada em estátua de sal. Pulando no tempo, os comunistas consideraram a parte ocidental de Berlim igualmente maldita e ergueram um muro para impedir o contágio, separando fisicamente o joio do trigo, o que é da mesma forma bíblico.
Lembro os dois exemplos para sugerir, a quem interessar possa, a destruição, via celestial, do Rio de Janeiro. Ou a construção de um muro isolando a cidade corrupta de seus imaculados vizinhos. Empreiteiros não faltarão para a tarefa.
Para agravar a nossa degradação, surgiu agora o escândalo das fraudes eleitorais. País tão vasto, com mais de 5.000 municípios, justo no Rio se deu abominável tramóia na contagem dos votos. Somando-se o crime cívico-eleitoral às balas perdidas, aos arrastões, ao banditismo da polícia e à polícia dos bandidos, aos bicheiros e ao holocausto dos meninos, é dose para merecer pelo menos o muro.
Melhor mesmo seria o Senhor repetir o castigo de Sodoma e, livrando a cara do dr. Roberto Marinho (que seria o justo mais à mão), despejar sobre a cidade o fogo de sua sagrada ira.
Milhões de votos foram apurados conscientemente em todas as urbes do vasto território nacional. Em Pernambuco, um varão elegeu dois irmãos, um filho, um sobrinho, um cunhado e ainda se elegeu a si mesmo.
Tudo bem. Ora, direis, devemos ouvir estrelas e meditar sobre o massacre da Candelária, a chacina de Vigário Geral e as urnas estupradas da 25ª Zona Eleitoral. No dia seguinte ao da eleição, a polícia paulista encontrou seis corpos num mesmo local. Foi uma coincidência topográfica de cadáveres, não uma chacina. Os 111 mortos de Carandiru foram um acidente de percurso das balas policiais.
Quanto ao Rio, que venha o muro. Ou que venha o raio que nos parta. Vizinho do Cristo Redentor, aqui na Lagoa, eu deveria ter alguma esperança de escapar. Mas não levaria a mal se fosse sacrificado. Eu compreenderia: tenho motivos para isso.

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