São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 1994
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Muito além do real

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Como todo remédio administrado em doses cavalares, o pacote anticonsumo que o governo empurrou goela abaixo da nação deve produzir um efeito colateral.
O otimismo inconsequente que se apossou do brasileiro pós-real está sendo submetido ao seu primeiro choque de realismo. Expõe-se agora, sob os escombros do palanque precocemente desmontado no primeiro turno, a verdade: o real ainda é um sonho.
Que estabilidade econômica é essa que não resiste à tentativa do brasileiro mais humilde de saciar minimamente a sua sede de consumo? Que moeda forte é essa que não pode abandonar o refúgio do bolso?
A resposta, embora clara, fugia à percepção do brasileiro médio. A economia não está estabilizada, mas apenas anestesiada. A saúde da moeda depende de uma cirurgia que está por ser feita.
De forma inconsciente, ao exercer o papel de eleitor, o consumidor encurtou a duração da própria utopia. Se tivesse levado a disputa presidencial para o segundo turno, teria mantido a barriga grudada ao balcão das lojas pelo menos até 15 de novembro, data em que se realizaria o segundo turno da votação.
Principal cabo-eleitoral da campanha, a equipe econômica não ousaria baixar o pacote da semana passada se Fernando Henrique, em vez de presidente eleito, conservasse a incômoda condição de candidato.
Aliados do candidato oficial, os empresários também evitariam riscos. Por certo manteriam os preços na geladeira por mais algum tempo. Ciro Gomes só começaria a enxergá-los como um bando de ``canalhas" lá por meados de dezembro.
O sonho consumista do brasileiro estava fincado na perspectiva de um pesadelo. A falsa estabilidade de preços era ditada pela conveniência do medo. O empresariado faria tudo para evitar o risco Lula. Até mesmo segurar preços.
Graças a Lula, Fernando Henrique pôde vender, durante a campanha, a ilusão da estabilidade fácil, indolor. Uma ilusão que começa a se esfarelar.
Como candidato, Fernando Henrique foi o principal beneficiário da fase de bonança do real. Como presidente, será a maior vítima da inevitável temporada de sacrifícios. Espera-se que a vaidade do novo presidente esteja preparada para o convívio com eventuais quedas de popularidade.
Fernando Henrique precisa, de resto, arregaçar as mangas o quanto antes. Tudo à sua volta induz à indolência. Até o calendário: o novo governo será instalado a 1 de janeiro, um domingo, o dia mundial do repouso. Nada poderia ser mais impróprio.

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