São Paulo, quinta-feira, 27 de outubro de 1994
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"Cintilação" expõe crise do tradicionalismo

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

``Cintilação" expõe crise do tradicionalismo
Já que o Japão não produz mais ``bons criminosos", como diz o veterano Nagisa Oshima, o jeito é fazer filme sobre a normalidade. De fato, este parece ser o campo em que tem se desenvolvido o cinema japonês contemporâneo, detendo-se sobre os detalhes banais da vida cotidiana, com uma simplicidade de tom por vezes até infantil (não por acaso as crianças são frequentemente os personagens principais).
Alguns filmes, porém, preferem questionar essa aparente ``pureza", mesmo que sem abandonar de todo a linguagem ingênua. É o caso de ``Cintilação", segundo longa do jovem George Matsuoka. O filme trata justamente de uma das formas mais tradicionais de se ``manter as aparências" na sociedade japonesa que é o ``omiai", ou casamento arranjado.
Sabe-se como, no Japão, o casamento à moda tradicional exige uma investigação minuciosa dos antecedentes dos noivos, promovida pelas respectivas famílias.
Em ``Cintilação", o começo é portanto clássico, mostrando a candidata a noiva recebendo um atestado de ``boa saúde". O noivo, por sua vez, ostenta a bela profissão de médico, o que parece deixá-lo acima de qualquer suspeita. Satisfeitas, as duas famílias entregam seus filhos à própria sorte, livrando-se na verdade de dois grandes problemas: ele é homossexual e vivia até então com um amante; ela é uma pessoa agressiva e dada ao alcoolismo.
Para surpresa de todos, porém, o casamento parece andar bem. Incorpora-se ao casal o amante do marido e passa-se a viver num curioso ``ménage à trois", em que a mulher, em compensação pela ausência de sexo, recebe carinho em dobro.
Neste ponto, revela-se ao mesmo tempo a ousadia e o desejo conciliatório de Matsuoka. Além do tema do homossexualismo ter sido até há pouco um tabu no Japão, mostrá-lo de forma positiva e em cenas delicadas de ternura e sexo coloca o tema num novo patamar, distante tanto do pornô quanto do tradicional machismo dos samurais.
O filme insere-se também na nova tendência do cinema e da literatura atuais no Japão, que tem nas mulheres atraídas por homossexuais masculinos um tema recorrente (ver, por exemplo, o best seller ``Kitchen", de Banana Yoshimoto).
A receptividade de tal temática, no Japão, se deve certamente à delicadeza amorosa e amigável que as mulheres podem desenvolver com os homossexuais e que seria impensável com seus maridos e parceiros heterossexuais, numa sociedade em que o papel do homem e da mulher é rigorosamente separado.
No entanto, o intuito dos personagens de ``Cintilação" nãop é romper com a aparência pacífica do casamento arranjado ou com a hipocrisia social, mas encontrar uma maneira menos dolorosa de manter as aparências. Neste jogo, é sem dúvida ainda a mulher que sai perdendo.

Filme: Cintilação
Direção: George Matsuoka
Elenco: Hiroko Yakushimaru, Estuji Toyokawa
Onde: Belas Artes/ sala Carmen Miranda, hoje, às 19h (legendas em inglês)

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