São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Escravidão e inferioridade

CHARLES MURRAY; RICHARD J. HERNNSTEIN

Para os autores, os brancos fizeram tudo para invalidar cada sinal de superioridade dos negros
CHARLES MURRAY
RICHARD J. HERNNSTEIN
Especial para ``The New Republic"
Quando olhamos para o mundo e vemos a enorme variedade de grupos étnicos que têm elevadas opiniões sobre si mesmos, por exemplo, ficamos impressionados com a facilidade com que cada um desses clãs, como os denominaremos, conclui que sua combinação de genes e cultura é a melhor do mundo. Aos olhos de cada clã, seus membros foram abençoados por terem nascido quem são –árabes, chineses, judeus, galeses, russos, espanhóis, zulus, escoceses, húngaros. A lista poderia continuar indefinidamente, dividindo-se em grupos cada vez menores (escoceses das montanhas, os nascidos em Glasgow, os escoceses-irlandeses). Os membros de cada clã não acham necessariamente que seu povo goza das melhores condições políticas ou econômicas do mundo, mas não duvidam dos méritos intrínsecos e ímpares de seu clã em particular.
De onde vem esta auto-estima do clã? Qualquer fator isolado, inclusive a inteligência, desempenha apenas um papel pequeno. A auto-estima se baseia numa mistura de qualidades. Tais pacotes de qualidades não são comparáveis entre os clãs. As misturas são muito numerosas para servirem como um sistema de avaliação de pesos com o qual todos poderiam concordar. Os irlandeses levam jeito com as palavras; no panteão das aptidões humanas, os irlandeses também valorizam muito quem leva jeito com palavras. Os russos se consideram emotivos; eles dão boas notas à emotividade. Os escoceses-irlandeses que se mudaram para a América tendiam a ser impertinentes, irriquietos e violentos. Bem, os escoceses-irlandeses americanos dizem com orgulho que essas qualidades fizeram deles ótimos pioneiros num país estranho.
Oferecemos a seguinte hipótese: os clãs tendem a classificar o mundo, colocando a si mesmos no topo, não porque cada clã tenha uma idéia inflada de suas próprias virtudes, mas porque cada um está usando um algoritmo de avaliação que verdadeiramente funciona dessa maneira.
Se essas observações têm mérito, por que é que um clã humano ocasionalmente desenvolve um senso profundamente assentado de inferioridade étnica relativa a outro clã? A história sugere que as razões independem de quaisquer qualidades específicas dos dois grupos e que, pelo contrário, geralmente têm origem em confrontações históricas. Quando um clã foi fisicamente subjugado por um outro, as reações psicológicas são complexas e duradouras. A literatura acadêmica sobre o desenvolvimento político está repleta de estudos das reações de povos colonizados que provam esta afirmação. Essas reações de auto-difamação não se restringem às pessoas comuns; pelo contrário, são mais profundas entre as elites locais. Consideremos, por exemplo, as atitudes profundamente ambivalentes das elites indianas em relação aos britânicos. A herança cultural da Índia é resplandecente, mas tal herança não foi suficiente para proteger as elites indianas dos danos psicológicos decorrentes de serem subjugadas.
A aplicação dessas observações ao caso americano e às relações entre negros e brancos sugere uma nova maneira de conceituar os argumentos já conhecidos do ``legado da escravidão". Não se trata simplesmente da questão de a escravidão certamente ter tido efeitos duradouros sobre a cultura negra, nem mesmo dela ter exercido um amplo efeito negativo sobre a auto-confiança e auto-estima dos negros, mas mais especificamente de a experiência da escravatura ter desvirtuado e tolhido a evolução do algoritmo etnocêntrico que os negros americanos teriam desenvolvido no decorrer normal dos acontecimentos.
Os brancos fizeram tudo em seu poder para invalidar ou menosprezar cada sinal de talento, virtude ou superioridade entre os negros. Eles tiveram que fazer isso –se os escravos fossem superiores em qualidades que os próprios brancos valorizavam, onde estaria a justificativa moral para mantê-los escravizados? E, assim, tudo o que os afro-americanos faziam bem teve de ser colocado em termos que menosprezassem a qualidade em questão. Mesmo a simples tentativa de se documentar esse ponto deixa uma pessoa exposta a acusações de condescendência e, assim, os brancos de fato conseguiram cooptar os julgamentos de valor. É ainda mais óbvio que é impossível falar abertamente sobre o superioridade de muitos atletas negros sem ser sujeito a acusações de que se estar sendo anti-negro de uma maneira enviesada.
O melhor modo de se ver a nervosa preocupação com a inferioridade racial nos Estados Unidos é considerá-la uma variação da experiência colonial. Ela está em processo de diminuição, à medida que os afro-americanos definem para si próprios uma mistura de qualidades que fazem do clã negro americano um clã ímpar e (corretamente aos olhos do clã) superior. Ela emerge nas obras de ficção de autores negros e num crescente corpo de trabalho realizado por acadêmicos negros. Está também acontecendo nas ruas. O processo não apenas é normal e saudável; é essencial.
Ao falar sobre estes pontos, há várias coisas que não dissemos e que precisam ser explicitados. Não estamos desistindo da miscigenação. Os italianos por toda a América que vivem em locais sem um único outro italiano nas vizinhanças e que, tecnicamente, podem ter mais sangue não-italiano que italiano, continuam a se orgulhar de sua herança italiana nas formas que descrevemos. O mesmo pode ser dito dos outros clãs étnicos. Nesse sentido, poderíamos ter facilmente usado os exemplos de texanos e minessotanos, bem como de tailandeses e escoceses-irlandeses, na descrição das maneiras pelas quais as pessoas se orgulham de seu grupo com naturalidade. Os americanos muitas vezes se vêem como membros de vários clãs ao mesmo tempo –e também pensam em si mesmos como 100% americanos. É uma das melhores qualidades dos EUA.
Também não estamos tentando dizer aos afro-americanos, ou a quaisquer outros, quais as qualidades que deveriam ser pesadas em seu algoritmo. Nossa intenção é precisamente a oposta: ninguém precisa dizer a nenhum clã como chegar a um modo de se ver que seja satisfatório; é uma das coisas que as comunidades humanas sabem fazer muito bem quando deixadas em paz. Muito menos estamos dizendo que as crianças de qualquer clã não deveriam, digamos, estudar cálculo, já que o estudo de cálculo não faz parte da herança do clã.
Os indivíduos progridem por si mesmos, abrindo caminho no mundo de acordo com aquilo que somam aos seus empreendimentos como indivíduos –e ainda conseguem obter consolo e orgulho nas suas afiliações de grupo. É claro que existem complicações e tensões neste processo. Quanto mais forte o clã, mais provável que olhe com desconfiança para seus filhos que saem para o mundo –e, ainda assim, maior a probabilidade de orgulhosamente se vangloriar dos sucessos deles, uma vez que os tenham alcançado, e maior a probabilidade de, um dia, os filhos reatarem alguns de seus laços com o clã que deixaram para trás. Este é um dos clássicos dramas americanos.
Tradução de VERA DE PAULA ASSIS e de CLARA ALLAIN

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