São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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QI mede comportamento inteligente

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O debate sobre possíveis diferenças raciais em relação à inteligência tem como pano de fundo mais dúvidas do que respostas.
E são problemas básicos: nenhum cientista tem uma definição perfeita do que seja ``inteligência", ninguém sabe dizer o que é uma ``raça", e menos ainda se sabe quais os papéis da genética e do ambiente na produção das presumidas diferenças.
Resumindo: o debate ainda é mais político do que científico, mesmo levando em conta que os modernos filósofos e historiadores da ciência já não acham mais que ela seja uma atividade humana ``exata", ou que tenda a evoluir magnificamente da ignorância para o iluminismo. Cientistas são seres humanos, convém lembrar.
Não é possível medir a ``inteligência", seja lá o que ela for, diretamente, assim como só é possível saber a distância das estrelas estudando-se a luz que emitem. Medir inteligência significa medir comportamentos considerados ``inteligentes", como dar as respostas certas em um teste de QI.
A inteligência também não é algo fácil de comparar, apesar de os testes de QI passarem essa impressão, ao especificarem uma média ``normal" de 100, ou de ``genial" para acima de 130, ou ``retardado" para números menores.
Pesquisas mostram que há diferentes composições da ``inteligência": existem habilidades espaciais, de memória, de raciocínio, de verbalização etc.
Mais difícil ainda é saber a causa da inteligência ou do comportamento inteligente. O debate incorpora-se a uma das mais antigas, e ainda não respondidas, discussões humanas: qual o peso da hereditariedade e qual o papel do ambiente na formação de uma pessoa.
Uma das maneiras de tentar conseguir respostas é o estudo de gêmeos idênticos que cresceram em ambientes distintos. Como ambos têm o genoma (conjunto do material genético) idêntico, qualquer diferença entre os dois só poderá ser explicada por influências ambientais.
Há apenas um problema: são raros os gêmeos nessas circunstâncias. ``Se eu tivesse algum desejo de viver uma vida indolente, eu gostaria de ser um gêmeo idêntico, separado no nascimento do meu irmão e criado em uma classe social diferente. Nós poderíamos ser alugados a uma hoste de cientistas sociais e pedir o dinheiro que quiséssemos", ironizou o biólogo Stephen Jay Gould, em seu livro ``The Mismeasure of Man", de 1981 (publicado no Brasil como `À Falsa Medida do Homem").
Em boa parte do livro, Gould se dedica a desmontar os argumentos supostamente científicos em prol dos testes de inteligência.
Alguns anos depois do livro de Gould, em 1990, uma grande pesquisa com gêmeos idênticos criados em ambientes distintos mostrou que eles tinham inteligências parecidas apesar da diferente educação, dando mais apoio aos que acreditam na maior importância do componente hereditário do QI.
Apesar desse resultado, os cientistas reconhecem o forte papel do ambiente. Há menos casos de evasão escolar em famílias sem problemas graves como alcoolismo ou violência. Há dados que mostram que o divórcio pode também prejudicar o rendimento escolar.
Hoje é mais fácil perceber os erros dos cientistas do passado e atribuir parte deles, senão todos, a preconceitos variados. Os brancos da era vitoriana se achavam superiores aos negros e orientais, logo suas pesquisas mostravam isso. Pesquisas modernas têm distorções menos aparentes.
``Os argumentos clássicos do determinismo biológico falham porque as características que eles invocam para fazer distinções entre grupos são geralmente o produto da evolução cultural", afirma Jay Gould.
Há poucos negros americanos doutores em física nuclear porque não se interessam por ciência ou porque não têm aptidão para ela? Por que um jovem negro prefere ser jogador de basquete ou cantor de rock do que cirurgião? Ele vai ser mais respeitado e não vai ser barrado na porta de nightclubs se for um jogador de futebol ou um médico? Enquanto não for possível equacionar variáveis tão exóticas nas medidas de inteligência, fica difícil medir o impacto do ambiente na variação genética que é sua base.
Apesar de a seleção natural darwiniana –a sobrevivência dos indivíduos e espécies mais aptos– ter produzido a inteligência humana, ela própria deu origem a um fator crucial na história do homem: a cultura. ``As sociedades humanas mudam por evolução cultural, não como resultado de alteração biológica", diz Gould.

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