São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 1994
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A vingança da miséria

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – No Brasil das últimas décadas, a miséria teve diversas caras. Houve um tempo em que, romântica, ela batia à nossa porta. Pedia-nos um prato de comida. Algumas vezes, suplicava por uma roupinha velha.
Conhecíamos os nossos mendigos. Cabiam nos dedos de uma das mãos. Eram parte da vizinhança. Ao alimentá-los e vesti-los, aliviávamos nossas consciências. Dormíamos o sono dos justos.
A urbanização do Brasil deu à miséria certa impessoalidade. Ela passou a apresentar-se como um elemento da paisagem. Algo para ser visto pela janelinha do carro, ora esparramada sobre a calçada, ora refugiada sob o viaduto.
A modernidade trouxe novas formas de contato com a riqueza. Logo a miséria estava batendo, suja, esfarrapada, no vidro de nosso carro.
Os semáforos ganharam uma inesperada função social. Passamos a exercitar nossa infinita bondade pingando esmolas em mãos rotas. Continuávamos de bem com nossos travesseiros.
Com o tempo, a miséria conquistou os tubos de imagem dos aparelhos de TV. Aos poucos, foi perdendo a docilidade. A rua aferecia-nos algo além de água encanada e luz elétrica.
Os telejornais passaram a despejar violência sobre o tapete da sala, aos pés de nossos sofás. Era como se dispuséssemos de um eficiente sistema de miséria encanada.
Tão simples quanto virar uma torneira ou acionar o interruptor, bastava apertar o botão da TV. Embora violenta, a miséria ainda nos excluía.
Vivia-se, nesta fase, a utopia da cesta básica. Tentava-se remediar anos de omissão com programas oficiais paternalistas.
Súbito, a miséria cansou de esmolar. Ela agora não pede; exige. Ela já não suplica; toma.
A miséria não bate mais à nossa porta; invade. Não estende a mão diante do vidro do carro; arranca os relógios dos braços distraídos.
Acuada, a zona sul passou de opressora a vítima dos morros. No Brasil de hoje, resumido pela realidade do Rio, a riqueza é refém da miséria.
A nata social pede a morte dos traficantes e, entorpecida, se esquece de educar os filhos viciados.
Houve uma fase em que ainda podíamos entregar a miséria a ministérios dedicados à causa social. Agora, o problema é submetido às pastas militares. Substituímos a distribuição de renda pelo urutu. O barulho das ruas tirou o nosso sono.

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