São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
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Inteligência está além dos testes de QI

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 03/11/94

A grafia do nome de Richard Herrnstein, um dos autores do livro "The Bell Curve", saiu errada no artigo de Marcelo Coelho.
A polêmica em torno do livro "The Bell Curve" (A Curva do Sino) é mais complicada do que parece. Os autores, Charles Murray e Richard Hernnstein, escreveram 850 páginas para provar que os negros têm QI mais baixo do que os brancos –e que provavelmente isso é genético.
A reação de qualquer indivíduo esclarecido é negar de imediato tudo o que há no livro –e mobilizar toda sorte de argumentos contra qualquer pesquisa científica que leva a conclusões racistas. É o que pretendo fazer –mas as coisas se complicam a cada parágrafo.
A primeira coisa que se diz, quando os negros vão mal em testes de inteligência (e os dados levantados por Murray e Hernnstein parecem ser conclusivos quanto a esse mau desempenho), é que isso não prova nada quanto à herança genética. Há fatores econômicos e sociais envolvidos. Sendo em média mais pobres, os negros têm em média menor acesso à educação, dominam menos o vocabulário da elite branca e, consequentemente, vão pior em testes de inteligência feitos por esta mesma elite.
Murray e Hernnstein contestam esse raciocínio. Mostram que, mesmo "isolando", como se diz, o fator socioeconômico, os negros são piores do que os brancos nos testes de QI. Pegando negros de classe média e brancos da classe média, a comparação continua desfavorável aos negros. O acesso a bens culturais, o fato de terem um lar mais estruturado, a maior integração ao "american way of life", nada disso conseguiu dar à média dos negros resultados melhores do que os registrados para a média dos brancos na mesma condição social.
Qualquer indivíduo que detesta o racismo, como eu, recebe o fato como uma má notícia. E trata de contra-argumentar.
Pensei no seguinte: condições socioeconômicas não são tudo.
O ambiente cultural, sem dúvida, é diferente entre negros e brancos, ainda que situados na mesma faixa de renda. Talvez o vocabulário, a própria linguagem, muda de etnia para outra a ponto de modificar o desempenho nos exames.
Mas o argumento é superficial, pensando-se em gerações moldadas para linguagem padrão da TV e dos video games. Apresento outro, quem sabe mais profundo. Ninguém ignora que chineses, coreanos, japoneses arrasam nesse tipo de exame.
Murray e Hernnstein, para não serem acusados de favorecer os brancos europeus, concedem isso. Os negros são piores do que nós, mas os orientais são melhores.
Agora, então, em características culturais, mais do que socioeconômicas. Culturalmente, acho que ninguém nega, os orientais são capazes de grande disciplina; dão-se melhor nos vestibulares, creio eu, porque estudam mais do que nós.
Pode-se pensar que, culturalmente, falte a brancos e a negros a mesma "seriedade" dos orientais quando se aplicam a testes de inteligência. Um negro médio, na mesma faixa de renda de um branco médio, pode então dar-se mal num exame de QI pelo fato de não levar as coisas com tanta seriedade, com tanta aplicação, quanto um oriental médio.
E aí estaremos no plano puramente cultural, não genético. Ou seja, não há relação entre cor da pele e inteligência, como querem os autores do livro.
Final feliz do argumento? Nem tanto. Os autores de "The Bell Curve" podem dizer o seguinte. Imagine-se uma cultura qualquer, onde o valor da inteligência sempre foi mais prezado do que valores como afetividade; onde a concentração mental vale mais do que a espontaneidade e o improviso; onde a disciplina e a obediência são mais favorecidas do que a indisciplina e a desobediência. Bem, ao longo de séculos, uma seleção darwiniana termina se fazendo.
E, assim, a cultura determina a carga genética. Ou seja, se algo como disciplina a concentração dependem em parte de disposições genéticas, há culturas que, favorecendo essas qualidades mais do que outras, garantem a seus herdeiros melhor desempenho.
Tudo isso é muito especulativo. Mesmo que se admita o dito acima, posso traçar outro argumento.
Foi, aliás, desenvolvido com brilho por Otavio Frias Filho, em sua coluna de 27/10 na pág. 2 da Folha. A idéia é a de que os testes de QI não medem a inteligência de um indivíduo, mas apenas sua capacidade de responder a testes de QI. Mesmo admitindo que culturalmente ou geneticamente os japoneses são melhores do que nós e que nós somos melhores do que os negros nesta especialidade deve-se convir que esta é uma especialidade idiota, a de resolver testes de QI.
Mas novamente a coisa se complica. Leio na revista "Newsweek" desta semana que em 1904 o psicólogo inglês Charles Spearman descobriu que as pessoas bem-dotadas num tipo de inteligência qualquer –digamos, talento musical– também se viram otimamente em outros campos de atividade. Quem é bom num tipo de teste –relações espaciais, matemática– tende a ser bom em outro –capacidade vocabular, talento para associações verbais.
A tese é algo implausível. Sabemos de pessoas geniais que são nulas em matemática. O problema talvez esteja na distinção entre "gênio" e "inteligência". O "gênio" pode ser perfeitamente um idiota e receber taxas de QI baixíssimas. Aliás, o sujeito que inventou os testes de QI não deve ter sido um gênio.
Ocorre-me a seguinte hipótese: imagine-se o caso de Mozart. Aos cinco anos, ele compunha concertos. Era um "gênio", no sentido de uma pessoa dotada de excepcional talento. Imagine-se alguém que tivesse dez, cem, mil vezes mais talento musical do que Mozart. Seria um autista. Estaria de tal modo perdido no mundo dos sons que talvez nem aprendesse a falar.
Não é à toa que inúmeros débeis mentais são "gênios" na matemática. Totalmente bobos, eles conseguem fazer cálculos complicadíssimos. Não é, de modo nenhum, um paradoxo. Eles conseguem fazer cálculos não porque são burros, mas porque são excessivamente inteligentes no talento que ganharam de nascença. Mozart, com mais talento musical do que tinha, talvez resultasse num idiota completo.
Certamente, inteligência não é sinônimo de capacidade para resolver testes de QI. Quem sabe uma pessoa excessivamente inteligente, posta diante de uma folha de exame, ponha-se a delirar, a imaginar um conto, a ouvir melodias no meio do rumor da classe. E qualquer um de nós conhece a figura do japonês "bitolado", ótimo na matemática, mas sem agilidade mental.
Mas será que a crítica aos testes de QI, por si só, salva a raça negra das acusações de burrice feitas pelo livro de Murray e Hernnstein?
Os dois autores, num tom alegre e politicamente correto, dizem que ir bem no QI não é o mais importante. Apostam em "valores" próprios à cultura negra e às contribuições que a "burrice" pode oferecer, em termos de improvisação, sensualidade, ritmo etc.
Quero crer que a inteligência não se mede pelos testes de QI. Envolve um grau de imaginação, de indisciplina, de revolta, de dúvida, que os otimamente classificados nos testes científicos não conseguem ter. Se isto é característica da raça negra, parabéns à raça negra.
Mas é isto o que me faz sentir, branco, superior aos coreanos que tiram nota dez no vestibular. Então, estou sendo racista. Será que todo mundo não é racista?
A única alternativa é negar qualquer componente genético nas características de personalidade que identificamos. Não sei se isto é cientificamente verdadeiro.
O pior efeito do livro "The Bell Curve" é dar argumento aos racistas. "Os negros são burros. Isso está provado cientificamente". Acontece que o racista não está interessado em ciência. O racista odeia os judeus, ou os orientais, porque são inteligentes ou pelo menos porque têm sucesso num mundo profissional que se simula bem nos testes de QI.
O racista odeia os negros não porque se saiam mal nos testes de QI, nem odeia os judeus porque se saem bem nos testes de QI. Odeia-os porque são negros, porque são judeus. Odeia-os irracionalmente. O que não é mostra de sua inteligência pessoal.
Quanto às outras consequências políticas do livro de Murray e Hernnstein, como a questão das quotas raciais nas universidades, isso é tema para outro artigo.

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