São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 1994
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Kiarostami transfigura realidade com poesia

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Convém não abusar da palavra gênio. Mas, quando se trata de Abbas Kiarostami, 54, ela é quase incontornável. O diretor iraniano é mais que uma moda.
Seus oito filmes que estão sendo exibidos na 18ª Mostra de Cinema dão conta, ao menos parcialmente, de um trabalho em que se encontram o realismo radical do italiano Rossellini, a poesia do dinamarquês Dreyer, o rigor do francês Bresson, a simplicidade misteriosa do japonês Ozu.
Referências que formam um conjunto originalíssimo, sobre o qual Kiarostami falou à Folha.
Folha - Seus filmes parecem ser, antes de tudo, uma maneira de conhecer as pessoas e gostar delas. É isso mesmo?
Kiarostami - Exatamente. Eu faço filmes porque essa é minha língua, minha expressão.
Folha - Em seus filmes também é muito importante o acaso, as coisas que vão acontecendo ao longo da realização.
Kiarostami - Eu tento fazer filmes que sejam, ao mesmo tempo, a representação de uma coisa e um acontecimento. As duas coisas ao mesmo tempo, sem ser nem uma nem outra.
Folha - Aconteceu agora uma coisa: a pilha do meu gravador está falhando e eu preciso de um minuto para fazer a troca. É muito estranho, porque sempre há isso em seus filmes: alguma coisa acontece que interrompe a ordem normal das coisas.
Kiarostami - Esses momentos são muito importantes. São detalhes. Coisas que acontecem, e as pessoas que estão na platéia, vendo o filme, participam junto. Nós estamos acostumados a sentar na cadeira e ver sempre campeões, super-homens. Nós não somos isso. Nesses momentos é que a tela se torna um espelho. A tela de cinema é um espelho onde vemos a nós mesmos.
Folha - Retomando. Em certos filmes seus, como "Através das Oliveiras" ou "E a Vida Continua" parece que o filme nasce do próprio filme.
Kiarostami - É a simplicidade do filme que determina isso. Meus filmes são diferentes de outros em que a imaginação tem mais importância. O filme é muito simples e muito real, trata da vida cotidiana.
Folha - Mas você já disse que a cegueira é até mais fácil de aceitar do que a ausência do sonho. E em seus filmes o próprio olhar cria o sonho.
Kiarostami - O sonho não é toda a vida. A realidade vem primeiro. O sonho sem realidade não tem valor nenhum. Nós vivemos na realidade. Mas, para aguentar o peso da vida, é preciso sonhar.
Folha - Em "Através das Oliveiras" a palavra "salam" é repetida muitas vezes. Por quê?
Kiarostami - "Salam" é um cumprimento. Mas no filme também é uma chave de comunicação, uma palavra que provoca um contato mais forte entre as pessoas.
Folha - Você é considerado o herdeiro do realismo de Roberto Rossellini. Como vê essa aproximação?
Kiarostami - Essa comparação é uma honra. Mas, enfim, cada um faz seu filme.
Folha - Sim, há essa relação com o real. Mas "Através das Oliveiras" me lembrou muito Yasujiro Ozu, que fez um filme em que a expressão "bom-dia" também é retomada todo o tempo, inclusive no título. E me parece que seus filmes são muito próximos desse cinema essencial, de Ozu e de Dreyer.
Kiarostami - São provavelmente os cineastas que eu mais admiro. Sobretudo Ozu me deixou uma impressão muito forte.
Folha - Há dois outros diretores que seus filmes me fazem lembrar: os franceses Robert Bresson e Eric Rohmer.
Kiarostami - Aí você citou os quatro que eu prefiro.
Folha - Dreyer era protestante. Ozu era budista. Você é islamita. Mas os três transmitem uma profunda espiritualidade em seus filmes.
Kiarostami - Essas três religiões estão ligadas a algo que vai além da vida material. Mas eu procuro transmitir algo que vai além da própria religião. Porque as religiões ficam até pequenas diante desse além. Agora, o cinema não é uma coisa para fazer propaganda de religião. Esse contato não material é mais do que a religião.
Folha - É o cinema, em um certo sentido.
Kiarostami - Sim.
Folha - Eu fiz a pergunta porque em filmes como "Através das Oliveiras" a função do diretor de cinema parece ser unir as pessoas. No caso deste filme, aproximar o casal.
Kiarostami - Isso não é uma coisa em que eu penso antes. É uma coisa que acontece durante a filmagem, que eu não controlo. Agora, como espectador, sinto também que meus filmes existem para aproximar as pessoas.
Folha - Em "Close Up", há no início um marginal que se faz passar por diretor de cinema e é preso. Aqui também o filme trabalha aproximando as pessoas.
Kiarostami - Em "Close Up", a idéia é que, quando você se aproxima das pessoas, você as conhece realmente. Esse é o sentido do título. O "close up" é um plano em que a câmera fica próxima do personagem. De longe, as pessoas desconfiam umas das outras. O "close up" cria outra idéia, real, do personagem.
Folha - Nesse filme, o jornalista tem uma noção utilitária do fato; o cineasta busca a pessoa.
Kiarostami - Não existe essa oposição. Na vida, todos nós somos às vezes o jornalista. Mas, ao nos aproximarmos das pessoas, perdemos o preconceito, passamos a conhecê-las de fato.
Folha - Em vários de seus filmes as flores têm uma função muito marcante. Por quê?
Kiarostami - A flor é um sinal. A natureza ajuda os homens a se aproximarem uns dos outros. Por isso prefiro filmar no campo. Lá as pessoas estão mais perto da natureza e da natureza delas mesmas.
Folha - Seus filmes geralmente se passam em lugares muito tranquilos, onde a vida parece correr calma. Mas, de repente, a questão do tempo, a urgência, se introduz de maneira dramática, cria um suspense muito forte.
Kiarostami - Eu diria assim. Você está em um lugar. E, por mais silêncio que exista, sempre há algo acontecendo. É isso que eu tento captar.
Folha - Você trabalha sempre com atores amadores. É difícil dirigi-los?
Kiarostami - Não. É preciso conhecer muito bem as pessoas. O trabalho prévio é grande. Mas na filmagem tudo fica fácil. É importante saber que, algumas vezes, você os dirige. Outras, eles é que vão dirigi-lo. É preciso saber ser dirigido também.
Folha - Por serem amadores você gasta muito filme?
Kiarostami - Ao contrário. Eu gasto pouquíssimo.
Folha - Em "E a Vida Continua" há uma conversa sobre futebol, onde o Brasil é muito citado. Você gosta de futebol?
Kiarostami - Eu gosto de futebol. O valor social do futebol é muito grande. Basta uma bola e você já tem um jogo. E por onde quer que você vá, o futebol está ligado ao Brasil. Agora, nesta Copa do Mundo, eu estava na Alemanha. E, quando o Brasil ganhou, houve uma grande comemoração. Eu pensei: devem ser brasileiros. Mas eram alemães que comemoravam. A identidade entre o Brasil e o futebol é muito forte.
Folha - Como explica o fenômeno Irã no cinema?
Kiarostami - Existe uma indústria organizada, que produz cerca de 60 a 100 filmes por ano. É claro, desses você tem cinco ou seis que são bons. Mas acho que isso é normal. Hoje há uma geração nova que faz muito sucesso no Irã, pessoas que estão com cerca de 30 anos, e isso é muito importante.

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